Após ‘Corra!’, Jordan Peele cria filme de terror crítico em ‘Nós’
Diretor vencedor do Oscar dosa inteligência com sangue para expor histeria
No ano passado, quando Jordan Peele subiu ao palco do Dolby Theatre para receber o Oscar de melhor roteiro por “Corra!”, um ciclo se rompeu na esbranquiçada cultura pop americana.
Não apenas pelo fenômeno de bilheteria que transformou um pequeno thriller de US$ 5 milhões (cerca de R$ 19 milhões) num sucesso de US$ 250 milhões (quase R$ 950 milhões). Nem por ter sido o primeiro afro-americano a vencer na categoria.
“A vitória foi um momento maluco que me libertou”, confessa. “Não preciso mais me preocupar com isso, porque o sonho virou realidade”, diz.
Essa liberdade levou o excomediante a voos maiores no seu novo filme. “Nós”, que estreia nesta quinta-feira (21) no Brasil e abriu o festival South By Southwest, no Texas, com filas quilométricas, é um horror que equilibra intelectualidade e sangue para criticar uma sociedade dividida e histérica.
Quando começou a escrever o longa, Peele pensou num elemento ausente na discussão sobre a sociedade moderna.
“Pensei nos ‘apontadores de dedo’. Seres humanos, por medo do estrangeiro, do vizinho ou daqueles que estão do lado de fora, são rápidos em apontar para o mais próximo”, diz. “Encarar o demônio individual é fácil, mas o demônio coletivo é outra coisa. Somos capazes de diferentes maldades quando estamos em grupo”, diz.
Na produção, o diretor usa a família liderada por Adelaide (Lupita Nyong’o), uma mulher que retorna à praia onde teve um trauma de infância para passar férias com o marido (Winston Duke) e os dois filhos (Shahadi Wright Joseph e Evan Alex).
A diversão é interrompida quando a família recebe a visita noturna de suas “versões más”, clones violentos que usam macacões vermelhos e fazem parte de um plano ainda maior.
Ao contrário de “Corra!”, “Nós” não é um filme sobre racismo, mas abre leituras sobre divisão social, xenofobia e redes sociais. “Acredito que meu público é inteligente. Mas eles têm permissão para desligar o cérebro”, brinca.
“Nos filmes de terror, geralmente os personagens negros são os primeiros a morrer. Em ‘Nós’, a primeira coisa que morre é o sonho americano, representado pelo conforto daquela família negra”, diz o ator Winston Duke.
“A dualidade da esperança e generosidade americana me parece muito aterrorizante neste momento”, completa Peele, que injeta o filme inteiro com reflexos malignos, até mesmo ao iniciar a trama nos anos 1980, quando a pequena Adelaide veste uma camiseta de Michael Jackson antes de encontrar sua versão maligna.
O cineasta conta que a referência não foi para coincidir com o documentário “Deixando Neverland”, sobre os casos de pedofilia do popstar, mas que a imagem foi proposital.
“A verdade é que Michael Jackson é conhecido por sua dualidade. Quando eu era criança, amava ‘Thriller’, mas também me assustava.”
O espírito da natureza dupla domina “Nós”, mas as referências cinematográficas vão deixar os fãs de “Corra!” satisfeitos. Jordan Peele entregou uma lista com dez filmes para todos os atores se prepararem: “Violência Gratuita”, “O Iluminado”, “Os Pássaros”, “Deixa Ela Entrar”, “Voltar a Morrer”, “Sinais”, “Medo”, “O Babadook”, “Mártires” e “Aniquilação”.
“Não gosto de terror, então precisei chamar meus amigos para assistir comigo”, lembra Lupita Nyong’o, cuja interpretação já lhe credencia para uma vaga no próximo Oscar.
Hoje, poucos nomes chamam tanta a atenção quanto Jordan Peele. Ele produz filmes (“Infiltrado na Klan”, “Candyman”), documentários (“Lorena”) e séries (“Lovecraft Country”), além de apresentar e produzir a nova versão de “Além da Imaginação”, que reestreia em abril nos EUA.
“É um autor inteligente, que não compromete sua visão, mas eleva o gênero e o próprio público”, derrete-se Nyong’o. “Me sinto abençoada de viver numa época em que Jordan Peele existe.”
Inácio Araujo
Não é preciso mais que um minuto de filme para apreciarmos a capacidade de Jordan Peele para nos atirar em atmosferas inquietantes.
E, no entanto, quase nada acontece: há um casal em um parque de diversões, em 1986, a mãe que pede ao pai para cuidar da filha. O pai que obviamente não cuida, e a menina sai andando sozinha.
Uma criança se perde —tudo pode acontecer. É noite, tanto pior. E, se ela entra numa casa de espelhos, pior ainda. Espelhos são coisas malditas, porque duplicam os seres —foi mais ou menos isso que Jorge Luis Borges escreveu. “Nós” parece, desde essa cena, feito para lhe dar razão.
Ali está a menina diante de suas imagens duplicadas, procurando a saída, quando topa outra vez com sua imagem, porém ela agora está virada de costas. E a garota tem uma reação de terror.
Quando o longa retorna, estamos nos dias de hoje. A menina (Lupita Nyong’o) tornouse mãe de dois filhos e está a caminho da praia com a família. Por que então a atmosfera tensa prossegue? Só por que o filho se chama Jason e adora uma máscara de personagem de terror?
Logo veremos: assim que uma outra família surge. Idêntica, porém assustadora. Sangrenta, também veremos logo. “Nós” nos projeta então numa atmosfera próxima à de “Os Pássaros”, de Hitchcock. Existe uma revolta, mas quem são, por quê? Os seres duplos podem representar de fato um espelho do que somos: um segundo “eu”, doente, perverso.
Mas esses seres começam a se multiplicar e já não pensamos em termos de eu, de reflexões especulares ou algo assim. É mais sociológico: existe um grupo, nós, e existe outro, eles. Estão em oposição, e é preciso enfrentá-los.
Um conflito mais doloroso porque somos nós mesmos em uma segunda versão, ao menos na aparência. Mas quem são eles, precisamente?
Se, à medida que os seres duplicados aparecem em quantidade sempre maior, lembramos dos pássaros hitchcockianos, quando eles se revelam somos remetidos a outra saga, a dos invasores de corpos, extraterrestres que tomam nossas carcaças e as substituem, produzem réplicas exatas de nós —mas são outros. Estão, por exemplo, no “Eles Vivem”, de John Carpenter, ou em “Os Invasores de Corpos”, de Don Siegel.
Mas, não nos enganemos: essas proximidades não se abrem à compreensão da narrativa de Jordan Peele nem servem para que cessem as inquietações. Até porque não são criaturas extraterrestres. São, antes, infraterrestres.
Muda nada, mas muda bastante. Num tipo de filme, por misterioso que seja, o ataque vem de fora: pássaros ou alienígenas. Aqui, o ataque é interior —vem de nós, de nossa imagem no espelho, do outro que vive em nós.
Por isso ninguém estranhará se, ao sair, se pergunte sobre quem seriam exatamente as pessoas que estão ao seu lado. Mesmo que sejam familiares.
“Nós” responde bem aos dilemas da era Trump nos EUA, que tanto se parecem com esses que vivemos também no Brasil. A pergunta é a mesma: quem estará ao meu lado?
Jordan Peele e seu filme respondem de forma terrivelmente aguda às aflições do tempo presente. Que mais esperar de um filme de terror?
Só como P.S.: aqui, a questão racial não comparece em nada. Ah, e a menção a Jeremias 11:11 não ajuda a dissipar o mistério, embora talvez indique que o culto excessivo à Bíblia tenha algo a ver com ele.