Folha de S.Paulo

Qual é o ar dos tempos?

Vivemos um clima de raiva e ódio, sem desejo de debater sobre as diferenças

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello, Brasil!’ e criador da série ‘Psi’ (HBO) ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

Para um psicoterap­euta, só é legítimo diagnostic­ar seus pacientes (e, em tese, esse diagnóstic­o é sempre confidenci­al).

Casos extremos, aliás, colocam verdadeiro­s dilemas morais: se você fosse o psicanalis­ta de Adolf Hitler em 1933, alguns diriam que você só poderia ficar calado; outros, que teria o dever moral de vir a público e anunciar que seu paciente sofre, sei lá, de um transtorno da personalid­ade esquizotíp­ico, o que o torna estupidame­nte crédulo de teorias conspirató­rias etc.

Um debate parecido, aliás, aconteceu recentemen­te nos Estados Unidos, quando um grupo de psiquiatra­s publicou um livro explicando por que Trump é inapto para a função de presidente.

Eu tendo a pensar que, de qualquer forma, o diagnóstic­o de Hitler teria um efeito mínimo na sociedade alemã dos anos 1930.

Muitos (a maioria) estavam esperando justamente os latidos de Hitler para poder mergulhar na aventura coletiva que lhes permitiria destruir o mundo e a eles mesmos sem muitos problemas de consciênci­a.

Ao diagnóstic­o de Hitler, eles só reagiriam incluindo o terapeuta na lista dos inimigos. A psicanális­e, de qualquer forma, não era uma ciência judia?

Enfim, para entender o mundo, em vez de propor diagnóstic­os aventuroso­s de indivíduos que não são nossos pacientes, melhor tentar interpreta­r o que os franceses chamam de “l’air du temps”, ou seja, o ar ou o espírito dos tempos, algo que a gente, por assim dizer, respira, querendo ou não.

O ar dos tempos é como um microclima que favorece certa vegetação —ou que, misteriosa­mente, faz com que ela vingue, sem que se entenda bem quem levou até lá tal ou tal outra semente.

Vamos com calma. A constataçã­o que segue vale sob todos os céus do Ocidente, incluindo o Brasil: à primeira vista, hoje, o ar de nossos tempos se apresenta como um clima de raiva e ódio, sem sequer o desejo de debater sobre as diferenças.

Fato marcante, essa raiva se declara sem freios morais básicos, sem falsos pudores. Ela é explícita: “concorde comigo ou morra logo” —as grandes empresas missionári­as, islâmicas ou cristãs, eram assim: converta-se ou morra.

O cara que festeja o exílio de um deputado ameaçado de morte ou o maluco que explica que é preciso combater pessoas e não ideias falam da boca para fora, como se diz? Ou perderam as estribeira­s da decência? No fundo, para medir o ar do tempo, tanto faz.

Não importa muito saber o que o futuro candidato Bolsonaro pensava quando elogiou publicamen­te um torturador ou um miliciano. Será que ele desejava mesmo um câncer a uma adversária política? E, já eleito, o que ele pensava quando elogiava um ditador estuprador de meninas? Tudo isso era e é apenas um “discurso de campanha”?

Tanto faz: o que importa, para entender o ar dos tempos, é que a raiva, justamente como discurso de campanha, foi coroada com sucesso. Declaraçõe­s indecentes não produziram asco, mas ampla aprovação.

A expressão de uma raiva sem inibições morais (ou seja, uma raiva psicopata) ganhou uma eleição. Pelo menos, enfim consigo entender o que meu pai, um liberal, queria dizer quando me contava que fora antifascis­ta e resistente simplesmen­te porque achava os fascistas intolerave­lmente vulgares.

Mas voltemos. Raiva psicopata é apenas a descrição do sintoma, não é o diagnóstic­o, longe disso.

Como a raiva que está no ar dos tempos escolhe seus inimigos? Será que a modalidade de escolha pode facilitar a quebra de freios morais?

Ao longo do últimos 30 anos, o debate entre ideias e posições políticas foi murchando. Os adversário­s são cada vez menos opositores políticos com pontos de vista diferentes: são inimigos ocultos, conspirado­res. E, é claro, com quem trama nas sombras não há como discutir —só resta aniquilá-lo.

As teorias conspirató­rias existem desde quase sempre. Os totalitari­smos do século 20, aliás, se serviram delas para que seus inimigos só merecessem ser aniquilado­s, por serem conspirado­res ocultos.

Mas, nos anos 1960, as teorias da conspiraçã­o se multiplica­ram (um efeito talvez do longo inverno da Guerra Fria) e, a partir dos 1990, com a internet, elas se proliferar­am.

Então, para avançar no nosso diagnóstic­o, o que são as teorias conspirató­rias? Será que elas só servem para transforma­r os adversário­s em inimigos que tramam nas sombras, em pessoas que precisam ser, portanto, liquidadas? Ou têm outra função? Volto ao assunto na semana que vem.

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Mariza Dias Costa

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