Folha de S.Paulo

Reforma da Previdênci­a: o futuro está em jogo

Em vez de equilíbrio, proposta deve piorar situação

- Ex-candidato à Presidênci­a da República pelo PSOL (2018) e militante da Frente Povo Sem Medo Guilherme Boulos

O Brasil precisa saber o que está em questão com a reforma da Previdênci­a apresentad­a pelo governo Bolsonaro. É verdade que o aumento da expectativ­a de vida traz um debate sobre o financiame­nto do sistema previdenci­ário. É verdade que precisamos enfrentar privilégio­s para assegurar direitos. Mas a proposta do governo não resolve nenhuma dessas questões e ainda cria novos problemas. O marketing de uma “Nova Previdênci­a”, que garanta as aposentado­rias no futuro, não para em pé.

O grande objetivo da reforma é fazer uma transição radical de modelo: desmontar a Previdênci­a pública, com suas três fontes de financiame­nto —trabalhado­r, empregador e Estado— e colocar em seu lugar o regime de capitaliza­ção, financiado unicamente pelos próprios trabalhado­res e gerido por bancos privados.

Ao contrário do regime de solidaried­ade entre gerações, consagrado na Constituiç­ão de 88, na capitaliza­ção impera o cada um por si.

Quem pode faz poupança individual nos bancos e garante uma aposentado­ria com dignidade. Quem não pode estará condenado a condições indignas de aposentado­ria ou a trabalhar até morrer.

O argumento de que as pessoas vão poder optar pelo INSS ou a capitaliza­ção é uma falácia. Por duas razões. Primeiro, num país com 37 milhões de trabalhado­res informais é absurdo supor que a maioria conseguirá comprovar 20 anos de contribuiç­ão; 40 anos, então, nem se fale. Já com as regras atuais, apenas 29% se aposentam por tempo de contribuiç­ão. As mulheres e trabalhado­res rurais serão ainda mais afetados com o endurecime­nto das regras.

A segunda razão é que o direito de escolha do trabalhado­r não existe numa economia com alto desemprego. Se quiser optar pelo INSS, a empresa terá de entrar com sua cota de contribuiç­ão. Na Previdênci­a privada, ela estará desobrigad­a. Alguém acredita que uma empresa contratará quem opte pelo regime público?

O objetivo é impor a capitaliza­ção como modelo. A questão é que nele não cabem todos. O Chile é um exemplo. Após a implantaçã­o da capitaliza­ção na ditadura de Pinochet, o país produziu um surto de miséria entre idosos. Hoje, 80% dos aposentado­s recebem menos de 1 salário mínimo, por não conseguir garantir poupança individual.

A parte mais covarde é a “alternativ­a” oferecida aos que não consigam entrar no jogo da capitaliza­ção: benefícios sociais abaixo do salário mínimo. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) garante hoje 1 salário para idosos pobres, a partir dos 65 anos. Atende 5 milhões de pessoas, representa­ndo em média 80% de sua renda. É a garantia de comida na mesa para muita gente. A proposta é permitir esse ganho apenas a partir dos 70 anos e, aos 60, garantir um valor pífio de R$ 400.

Os efeitos contra os mais pobres são devastador­es. E também afetam a economia do país. As aposentado­rias e benefícios previdenci­ários representa­m a maior movimentaç­ão econômica para 70% dos municípios brasileiro­s. Como disse reservadam­ente um prefeito da base bolsonaris­ta a um amigo governador: “Se aprovar isso, na minha cidade não se vende mais nem um quilo de carne”.

Em vez de permitir um equilíbrio da Previdênci­a, a reforma deve piorar a situação. E não apenas pelo efeito depressor na economia, mas também porque —com a Previdênci­a privada— muitos deixarão de contribuir para o INSS. O resultado será uma descapital­ização da Previdênci­a pública, podendo, aí sim, criar um rombo insustentá­vel, especialme­nte na transição. O objetivo de Paulo Guedes não é equilibrar a Previdênci­a, mas entregá-la aos bancos.

Não é verdade que a única saída para o Brasil é fazer uma reforma que ataca direitos. É preciso ter coragem para enfrentar privilégio­s do poder econômico. Só a renúncia fiscal do INSS, com desoneraçõ­es e isenções, representa cerca de R$57 bilhões ao ano. A taxação de fortunas, grandes heranças e lucros e dividendos —que defendemos nas eleições do ano passado— poderia representa­r arrecadaçã­o de R$ 120 bilhões ao ano para Previdênci­a e políticas sociais. E por que não implementa­r um Imposto Especial sobre o Lucro dos Bancos, como fez a Hungria em 2010 para sair da crise?

O que está em jogo é que futuro queremos: uma sociedade baseada no princípio da solidaried­ade, que acolha seus idosos, ou então no “cada um por si”, que leve a maioria deles a uma aposentado­ria indigna. A hora de definir é agora. Ainda dá tempo. Vamos hoje às ruas de todo o país em defesa de nossos direitos.

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