Folha de S.Paulo

Contra ‘despejo’, morador de rua anda com decreto na mão

- Mariana Zylberkan

O caminhão da prefeitura tinha acabado de ser carregado com os pertences recém-apreendido­s de oito moradores de rua e ainda aguardava o sinal abrir para deixar a av. Duque de Caxias, na região central.

Enquanto isso, um dos semteto usava uma vassoura para tirar a água de reúso esguichada pelos agentes municipais na calçada onde antes havia barracas e colchões.

O pedaço de calçada em frente a um prédio vazio é onde Fabio Keller, 41, dorme há quase um ano. Na tarde de quarta-feira (20), ele conta que estava nu dentro da barraca, dormindo, quando foi acordado por agentes municipais de coletes laranjas.

Teve tempo de pôr uma bermuda e agarrar um colchão, algumas roupas, um tênis e a pasta onde mantém uma cópia colorida do decreto municipal que rege a conduta de agentes municipais durante ações de zeladoria.

O texto, aprovado em 2016, determina que, ao abordar moradores de rua, os funcionári­os devem preservar itens pessoais, como documentos, mochilas e roupas, além de instrument­os de trabalho, como ferramenta­s e carroças.

Nada disso foi cumprido na tarde desta quarta, segundo Fabio, que diz morar há mais de 30 anos na rua ou em “hotéis, pensões e casas de ‘doidas’ que conheço por aí”. “Tenho três casas onde moram as minhas filhas. Tenho oito filhos”, diz ele ao mostrar nomes tatuados nos braços.

Durante a abordagem, mesmo mostrando o decreto, Fabio contou que não houve conversa. “Eles foram tirando as coisas e disseram que apenas estavam fazendo o trabalho deles.” O papel lhe foi dado pela namorada, assistente social que trabalha na prefeitura, que lhe ensinou sobre seus direitos em abordagens.

A poucos metros de onde ficava a maloca de Fabio —a lona estendida foi levada no caminhão— estava o casal que divide a calçada com as cachorras Dandara e Luna há três anos. “Antes a gente morava alguns quarteirõe­s mais para baixo, mas casamos e eu fiquei com ciúmes de ela conviver com outros homens enquanto eu trabalhava”, conta Henrique Alejandro, 31.

Ele usa uma carroça para recolher papelão e entulho. À noite, vira abrigo para o casal e as cachorras dormirem. Como é hábito de quem vive nas calçadas, o casal se alterna durante a madrugada para vigiar a maloca.

Glaucine Pereira, 27, organiza batons, xampu, talco para os pés, pomada e creme hidratante numa protuberân­cia da fachada do prédio. Há também uma garrafa de Corote. “Eu não bebo, saí de casa para morar na rua porque minha família toda era viciada menos eu”, conta ela, que diz não se importar com o vício do marido, dono da garrafa.

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