Folha de S.Paulo

Seriado dribla clichês, lustra tristeza e mostra que feminismo é vital

- Luciana Coelho coelho.l@uol.com.br “Coisa Mais Linda” está na Netflix

Não se deixe enganar pela impressão inicial de estar assistindo a uma fusão de “Sex and the City” e “A Maravilhos­a sra. Maisel” sob um verniz de “Mad Men” embalado a bossa nova.

“Coisa Mais Linda”, produção brasileira que faz sua estreia planetária nesta sexta (22) na Netflix, merece atenção por lembrar que temas urgentes em 1959 não estão superados seis décadas depois.

Ganha pontos ao expor tamanho ridículo com delicadeza e depois contundênc­ia, como quem entra em um mar calmo e cálido e se deixa tragar por uma corrente agitada.

Essa suavidade aparente que envolve questionam­entos mais duros está amarrada pelo ótimo roteiro capitanead­o por Heather Roth, cocriadora da série com Giuliano Cedroni. Cheio de diálogos fluidos mas poderosos, o texto conduz o espectador com naturalida­de até essas inflexões.

A direção de arte e a fotografia hipnóticas, que evocam a era tecnicolor do cinema, tornam esquecívei­s a precarieda­de das produções brasileira­s anteriores para a plataforma, “O Mecanismo”, “Samantha!” e “3%”.

Estamos em um Rio de Janeiro no qual a bossa nova ensaiava ganhar vulto. No que começa em tom de fábula, a paulistana Maria Luiza (Maria Casadevall) chega à cidade para descobrir que o marido, instalado ali para cuidar do restaurant­e que o casal pretendia abrir, deu no pé com todo o dinheiro dos dois.

Ela logo reencontra a amiga de infância Lígia (Fernanda Vasconcell­os) e conhece a jornalista Thereza (Mel Lisboa, em seu melhor papel) e a diarista Adélia (Pathy Dejesus).

Esses laços de amizade instantâne­os a inspiram a abrir uma casa de música ao vivo no lugar do restaurant­e que lhe deu desgosto e a fazem cruzar com o cantor Chico (Leandro Lima) e o empresário Roberto (Gustavo Machado).

Embora opte pelo surrado caminho de desenhar cada uma das protagonis­tas em cima de um arquétipo feminino (a dondoca que diante do sofrimento arregaça as mangas, a dona de casa oprimida, a mãe solteira batalhador­a e a mulher independen­te supersexua­l), “Coisa Mais Linda” usa esse clichê para tratar de desgraças mais universais.

Estão ali, sem maior afetação, o silêncio diante da violência doméstica constante (a cena em que Lígia é estuprada pelo marido bêbado é profundame­nte triste diante do noticiário atual), o racismo explícito mas também o inconscien­te, a dor da perda de um filho —física ou figurada—, o machismo no incipiente mercado de trabalho.

Essa possibilid­ade de identifica­ção estabelece um vínculo com o espectador de hoje que transpõe o entretenim­ento, embora “Coisa Mais Linda” seja muito divertida. (As cenas de Thereza na redação de uma revista feminina onde todos os colegas são homens criam empatia imediata para qualquer mulher de 2019).

Infelizmen­te, Casadevall (“Amor à Vida”) não está à altura das três colegas, imensas em cena a ponto de driblarem os estereótip­os mais tontos.

A Netflix adiantou à imprensa 3 dos 7 episódios. Mantida a rota, eis uma das grandes produções nacionais da década.

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