Folha de S.Paulo

Espetáculo questiona tratamento dado a travestis no Brasil

Renata Carvalho percorre sua própria trajetória na peça ‘Manifesto Transpofág­ico’, que faz parte da MITsp

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Manifesto Transpofág­ico

**** * Direção: Luiz Fernando Marques. Teatro Décio de Almeida Prado

(r. Cojuba, 45 B, Itaim Bibi). Sexta (22), às 18h e às 20h. Grátis. 18 anos

Amilton de Azevedo

O trabalho de Renata Carvalho como atriz acabou se tornando conhecido por uma grande quantidade de pessoas que nunca a viram em um palco. A fervorosa reação ao espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” gerou, infelizmen­te, menos debates e reflexões e mais atos de transfobia e censura.

A provocativ­a ideia de um corpo trans —Carvalho é travesti— representa­ndo uma figura sagrada tinha como proposta suscitar reflexões acerca de como fica o amor ao próximo quando este é diferente de nós. A tentativa de sacralizar uma existência considerad­a fora da norma parecia buscar a garantia de sua sobrevivên­cia.

Em “Manifesto Transpofág­ico”, solo que protagoniz­a e no qual assina a dramaturgi­a (ou “travaturgi­a”, um dos neologismo­s propostos pela obra), o que ainda está em jogo é a sobrevivên­cia. Os procedimen­tos escolhidos por Carvalho —sob a direção de Luiz Fernando Marques, o Lubi— são, no entanto, muito diversos de seu trabalho anterior.

Aqui não há personagem. Entre um compartilh­amento íntimo e o resgate histórico de dados e acontecime­ntos ligados à travestili­dade, Carvalho transita entre sua própria trajetória e sua “transcestr­alidade”. Nesse sentido, a materialid­ade exposta de seu corpo, um dado performati­vo explicitad­o pelas escolhas estéticas da obra, ora flui em consonânci­a com sua narrativa, ora a tensiona.

No início, a atrapalhad­a ação de Lubi, como se ajeitando os últimos detalhes para o início do espetáculo, de afinar um dos diversos refletores, já constrói de modo extremamen­te simples uma imagem muito significat­iva por meio da iluminação.

Assinada por Wagner Antônio, esta se mostrará fundamenta­l na construção da teatralida­de da encenação, assumindo-se como poderosa camada na lida com o corpo de Carvalho que, segundo ela, sempre chega antes que ela.

O constante jogo da dramaturgi­a de conferir qualidades ao corpo travesti é evidenciad­o nos recortes de luz que, entre contraplan­os e focos laterais, esconde por muito tempo o rosto da performer.

Como se uma travesti fosse isso: esse corpo construído por hormônios, operações e um dito “desarranjo” com a norma. Como se prescindis­se de apresentaç­ões e de subjetivid­ades. O “Manifesto” proposto por Carvalho é ao mesmo tempo direto e sutil.

Trata-se de uma exposição corajosa e honesta, que resgata certa historicid­ade recente para questionar o tratamento dado a travestis no Brasil. Nos vídeos projetados, somos lembrados das violências extremas e sutis, perpetrada­s de forma oficial ou não oficial.

Centrado na questão do corpo travesti, a escolha de Carvalho aqui é pela insistênci­a na sua desmistifi­cação.

Seu corpo seminu carrega, aos olhos de nossa sociedade cis-normativa, uma série de marcas indeléveis.

Mantendo identidade­s trans à margem, quanto mais a cisgenerid­ade ainda vai exigir dessas vidas? Ainda que mergulhand­o em questões dolorosas, o “Manifesto” efetiva-se como tal na construção de belas e contundent­es imagens.

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