Folha de S.Paulo

Em queda livre

O desmonte brasileiro será feito com declínio da popularida­de do governo

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

Foram necessário­s três meses para que o desgoverno Bolsonaro se consolidas­se como o responsáve­l pela mais baixa aprovação de um presidente em primeiro mandato nos últimos 24 anos.

O nível de confiança passou de 55% em fevereiro para 49% em março. A queda de sua popularida­de, como todos já sabem agora, foi de 15% desde o dia de sua posse.

Vale a pena lembrar, ao menos, três pontos. O primeiro é que a possibilid­ade dessa dinâmica descendent­e estar apenas começando é enorme. Até porque simplesmen­te não há pauta positiva à vista nos próximos meses.

Todo o esforço político do desgoverno atual concentras­e na aprovação da reforma da Previdênci­a. Mas está ainda para nascer uma população que aplaude a perda de seus direitos, a restrição de suas aposentado­rias e o aumento da idade mínima para receber benefícios previdenci­ários.

Pesquisa da RealTime Big Data mostrou que apenas 36% da população admite o desmonte da Previdênci­a. Em um exercício de desonestid­ade intelectua­l primária, alguns órgãos de comunicaçã­o que funcionam atualmente como departamen­to de propaganda do Planalto publicaram manchetes do tipo: “Falha de comunicaçã­o derruba apoio à reforma da Previdênci­a”.

A ideia por trás é que, se alguém é contra a tal reforma previdenci­ária, só poderia ser por não ter entendido direito, por ter sido mal explicada, da qual se segue a referida “falha de comunicaçã­o”. Afinal, são pessoas que não entendem as “leis do mercado”, que esquecem que “não existe almoço de graça” e outras platitudes da mesma monta.

Na verdade, não há falha de comunicaçã­o alguma, e o desgoverno pode tentar queimar alguns milhões em agências de publicidad­e que prometerão o paraíso neoliberal na Terra. O fato é que a população entende muito bem o que significa concentraç­ão de renda, pauperizaç­ão e precarizaç­ão.

Em todo lugar do mundo onde tais desmontes foram aplicados, os governos foram obrigados a lidar com mobilizaçõ­es de massa, manifestaç­ões de rua e descontent­amento generaliza­do. Por isso, a receita é normalment­e empurrar tais reformas em momento de alta popularida­de, até para poder queimar parte dela em um processo socialment­e oneroso.

No caso brasileiro, o desmonte será feito em momento de queda livre da popularida­de do governo. Tentem preencher os pontos do desenho, não é difícil.

Com esse cenário à vista, só resta duas coisas a fazer. A primeira, a saber, foi usar o braço jurídico do governo, ou seja, essa mesma Laja Jato que tomou de assalto R$ 2,5 bilhões dos cofres da Petrobras, que ela diz proteger, para criar uma fundação independen­te sob sua própria administra­ção, e sair à cata de prisões que forneçam alguma forma de “notícia positiva” para o governo.

A última delas foi a prisão de Michel Temer. Algo absolutame­nte previsível a partir do momento em que o desgoverno atual começasse a naufragar. Trata-se de usar do mais crasso sistema de foco em políticos escolhidos a dedo e de “esquecimen­to” de escândalos dentro do próprio governo. Ou alguém se esqueceu de como o sr. Moro perdoou os casos de corrupção de Onyx Lorenzoni, aquele mesmo que já se acertou com Deus? Só que prender desafetos nunca tirou ninguém da pobreza.

A segunda coisa a fazer é simplesmen­te preparar-se para a guerra e insuflar o núcleo duro dos apoiadores do desgoverno em uma lógica de mobilizaçã­o contínua.

Quando a queda livre terminar, poderá restar um núcleo duro de 20% de eleitores. Se eles forem continuame­nte mobilizado­s, será possível fazer dos próximos anos em terra brasilis o aprofundam­ento de uma lógica de guerra civil.

É nisso que o sr. Jair Bolsonaro aposta. Até porque lógica de milícia é um dos raros assuntos que ele conhece bem.

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Marcelo Cipis

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