Folha de S.Paulo

Um passo à frente, dois para trás

- Marcos Lisboa Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

O Planalto parece estar em estranha dança. Faz gestos para negociar a reforma e é conivente com o desprezo pela boa política.

Quem sabe o susto imenso da última semana não ajude a evitar o desastre?

A expectativ­a de que o país conseguiri­a encaminhar uma agenda de reformas para interrompe­r a degradação das contas públicas e evitar a volta da recessão foi solapada por uma proposta inoportuna e conflitos disfuncion­ais.

Em meio às negociaçõe­s sobre a reforma da Previdênci­a, o governo enviou ao Congresso uma proposta para as carreiras dos militares que procura corrigir distorções acumuladas por mais de uma década.

Difícil imaginar momento mais inadequado. Afinal, a Câmara começava a discussão sobre a nova Previdênci­a, que reduz benefícios de servidores públicos e aumenta o tempo de contribuiç­ão dos trabalhado­res formais do setor privado.

No debate público, as percepções são tão relevantes quanto os fatos. É verdade que os salários dos militares estão defasados em comparação com outras carreiras do setor público. Também é verdade que o atual governo congrega militares nos principais cargos como não se via desde os anos 1980.

Qualquer aprendiz de político poderia antecipar que a proposta seria mal recebida. O governo parece conceder benefícios para as tropas enquanto propõe sacrifício­s para os demais. Não é bem assim, mas o protagonis­mo na política pública cobra seu preço.

Quem lidera um país deve dar o exemplo. Se os militares querem estar à frente da política pública, então deveriam saber que têm de arcar com o ônus de não propor, neste momento, a recomposiç­ão de perdas de tantos anos.

Como se não fosse suficiente, a nova política parece jogar o bebê fora junto com a água do banho. Certamente a corrupção é inaceitáve­l.

No entanto, tratar o presidenci­alismo de coalizão como equivalent­e à corrupção é condenar a vida cotidiana por conta das suas possíveis patologias. Algo como proibir os automóveis pela existência de motoristas psicopatas.

A boa política, a negociação sobre a agenda do governo e a nomeação dos seus gestores, permite à sociedade mediar conflitos e construir soluções. Seu benefício colateral é impedir o desastre das guerras.

O Planalto parece estar em uma estranha dança de um passo para a frente e dois para trás. Faz gestos para negociar a reforma e, ao mesmo tempo, revela-se conivente com o desprezo pela boa política.

Sabemos que o presidente foi omisso sobre as reformas na campanha e tem um histórico de defender interesses corporativ­os com a virulência dos sindicalis­tas. Pois bem, agora lidera o governo e há um país que ameaça sangrar. Gestos de boa vontade e diálogo com a oposição são fundamenta­is para enfrentarm­os os nossos graves desafios.

Há uma janela de oportunida­de, mas ela pode se fechar.

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