Folha de S.Paulo

Mortes em trotes colocam em xeque fraternida­des nos EUA

Famílias enfrentam dificuldad­es para processar grupos; universida­des são lenientes

- Danielle Brant

Em 23 de fevereiro, o estudante Marlon Jackson, 23, morreu em decorrênci­a dos ferimentos provocados por uma colisão com outro carro em uma estrada em Smyrna, Delaware.

Seria somente mais uma morte de um jovem a lamentar se não fosse a provável causa do acidente: segundo a família, Marlon, que dirigia o veículo, estava sem dormir havia um dia inteiro.

E a razão para a privação de sono seria um trote da fraternida­de Kappa Alpha Psi, que o enviava para “missões” em horários aleatórios —no momento da batida, ele estaria cumprindo uma delas.

Não é a primeira vez que a fraternida­de se vê envolvida em um caso de trote com final trágico. Em 1994, um membro do grupo no Missouri morreu após ser espancado em um ritual de iniciação —nos EUA, as maiores fraternida­des (como Sigma Alpha Epsilon, Kappa Sigma e Sigma Chi) têm uma central nacional e ramificaçõ­es (ou seções) locais.

Não são poucas as mortes ligadas, de alguma forma, a grupos com letras gregas no nome: 248, nas contas de Hank Nuwer, professor da escola de jornalismo do Franklin College e autor do livro “Hazing: Destroying Young Lives” (Trote: destruindo vidas jovens).

Nuwer, membro da sociedade de honra Phi Kappa Phi, criou o banco de dados motivado por uma experiênci­a que teve quando era estudante de jornalismo, em 1975, na Universida­de Nevada, em Reno.

Uma fraternida­de local, The Sundowners (em referência a drinques tomados no pôr do sol), fez um ritual de iniciação em uma reserva indígena. Saldo: um morto e outro candidato com dano cerebral causado pela quantidade de álcool ingerida.

“Hoje, oito de dez mortes em trotes são ligadas ao álcool. Antes de 1940, não houve nenhuma”, diz Nuwer.

Mesmo quando não há mortes, os rituais e trotes, em tese proibidos por leis locais, da universida­de ou da própria fraternida­de, podem ser considerad­os de gosto questionáv­el.

Em 15 de fevereiro, nove integrante­s da Delta Kappa Epsilon foram presos por fazer “brincadeir­as” durante o juramento de calouros da Universida­de Estadual da Louisiana que queriam integrar o grupo.

Exemplo: mandar os candidatos deitar com o rosto virado para o chão coberto de vidro quebrado enquanto os veteranos urinavam neles. Também houve relatos de agressões com canos, socos, chutes e tapas. Um dos veteranos jogou gasolina num novato, o líquido escorreu para os olhos e o jovem teve que sair correndo para lavá-los e evitar danos.

Os incidentes não parecem ser suficiente­s para afetar a popularida­de dos grupos. Em algumas universida­des, mais de 90% dos alunos homens seriam filiados a uma organizaçã­o do tipo —caso do Welch College, em Gallatin, Tennessee.

Em cidades pequenas como Gallatin —cerca de 37 mil habitantes—, fazer parte de um grupo desses pode ser a única chance de o novato ter uma vida social. É algo bem parecido com o que acontecia havia décadas, afirma Andrew Moisey, fotógrafo e professor da Universida­de Cornell.

“Por muito tempo, as frater- nidades eram a única forma de socializaç­ão de estudantes que vinham de cidades distantes. Aí chega um grupo de caras que afirma que vai protegê-los. Parece bom.”

Durante sete anos, Moisey fotografou uma fraternida­de na Universida­de Berkeley, na Califórnia, onde seu irmão estudava. Lá, ele encontrou um manual com rituais de iniciação.

O fotógrafo, então, decidiu publicar um livro, “The American Fraternity: An Illustrate­d Ritual Manual” (A fraternida­de americana: um manual de ritual ilustrado), em que os ritos são reproduzid­os.

“Fotografar uma fraternida­de é como ser fotógrafo da National Geographic: os leões passam a maior parte do tempo dormindo ou sem fazer nada, aí você tem de esperar eles acordarem e fazerem algo incrível”, afirma.

Ele registrou estudantes jogandovid­eogame,pingue-pongue, lavando louça e em outras atividades banais. “Mas, quando é hora de se divertir, eles podem se comportar mal.”

Aí entram as cenas descritas acima e outras parecidas com as retratadas em filmes americanos, sempre com bebida e sexo —ou episódios de estupro, que não são raros.

Para alunos novos entrar numa fraternida­de também pode ser puro networking.

Ex-presidente­s famosos — entre eles, o atual, Donald Trump, mas também Bill Clinton e George W. Bush— pertencera­m a uma delas. Vários CEOs também, como os magnatas Warren Buffett e Michael Bloomberg.

Mas nem todos podem ser admitidos nos grupos.

“Historicam­ente, as [fraternida­des] mais poderosas e antigas eram brancas, em parte porque a maioria foi criada no século 19, quando basicament­e brancos tinham acesso à educação superior”, diz John Hechinger, autor do livro “True Gentlemen: The Broken Pledge of America’s Fraterniti­es” (Verdadeiro­s cavalheiro­s: o juramento quebrado das fraternida­des americanas).

“Depois, elas excluíram minorias raciais, judeus e mulheres. Por isso, foram criadas sororidade­s e fraternida­des para negros, latinos e asiáticos, por exemplo.”

Outra tradição passada adiante foi a relação conturbada entre universida­des e fraternida­des, na qual há um conflito de interesses que dificulta que os grupos sejam punidos por muito tempo quando ocorrem mortes nos trotes.

Em geral, as universida­des precisam do alojamento oferecido pelas fraternida­des. Elas também recebem dinheiro de ex-alunos bem-sucedidos.

Logo, quando calouros morrem, o mais comum é responsabi­lizar os estudantes envolvidos no trote, e não a organizaçã­o inteira. Quando alguma punição ao grupo ocorre, como o fechamento da seção, costuma ser temporária.

“As universida­des não querem prejudicar essa fonte de renda, então encaram o caso como uma maçã podre. A maioria não quer irritar os ex-alunos”, afirma Nicholas Syrett, professor da Universida­de do Kansas.

Quando os pais do aluno morto tentam processar a fraternida­de, também encontram dificuldad­e. “Elas dizem que não são responsáve­is pelo que aconteceu, que os alunos violaram as regras. Outros alunos não testemunha­m, e há o discurso de que ninguém obrigou o aluno a beber.”

Syrett é cético em relação a mudanças nesse cenário. “A organizaçã­o nacional quer que o trote termine, mas os alunos novos querem continuar fazendo. Se você punir uma fraternida­de, em quatro anos os membros serão diferentes. Se você convencer todos agora a abandonar o trote, ainda assim será difícil convencer os novos alunos. É um trabalho sem fim.”

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William Bretzger/ The News Journal Marlon Jackson, 23, bateu o carro em que estava com três amigos após passar mais de 24 horas sem dormir; segundo sua família, ele estaria cumprindo uma missão que fazia parte do trote da fraternida­de Kappa Alpha Psi, em Smyrna, no estado de Delaware

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