Folha de S.Paulo

Inspira, expira

Somos tão civilizado­s que precisamos reaprender o que já se nascia sabendo

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Havia aquela piada da loura que vai ao cabeleirei­ro. Pedem-lhe para tirar os auscultado­res do walkman mas ela diz que não pode ser, caso contrário morre. A esteticist­a dizlhe que não seja boba, tira-lhe os auscultado­res e, segundos depois, a loura cai morta. A esteticist­a põe os auscultado­res e ouve uma voz que diz: inspira, expira, inspira, expira.

Hoje, a anedota não faz sentido. Já não há walkman, já não há louras em piadas e já quase não há piadas. E, mais importante, já não é extravagan­te não saber respirar. Há uma boa quantidade de livros, vídeos e até cursos destinados a ensinar a respirar —o que significa que muita gente está a precisar de aprender a respirar.

E não só: também ninguém sabe bem como dormir. Há dias estava a ver um inovador produto que promete ensinar a respirar melhor para que o consumidor durma melhor. Trata-se de um disco que se coloca no criado-mudo. O aparelho projeta uma luz para o teto e a gente tem de ir respirando ao ritmo em que a luz brilha. A cadência da luz vai diminuindo e, por isso, a nossa respiração também. E então adormecemo­s mais facilmente.

Estive a segundos de encomendar o produto, que custava £ 49, até que me ocorreu que eu era a loura da anedota.

Talvez neste ponto eu deva fazer algumas declaraçõe­s de princípios. Eu não acho que exista uma relação entre a cor do cabelo de uma pessoa e a sua capacidade intelectua­l. Não discrimino entre louras, morenas ou ruivas. Tenho amigas louras e acho que elas devem poder casar e adotar crianças. Mas não queria ser a loura da anedota porque ela é burra ao ponto de não saber respirar. É só isso.

No entanto, hoje ninguém parece saber respirar. Nem dormir. Eram coisas que se nascia a saber fazer, como qualquer animal. Mas agora somos tão civilizado­s que precisamos aprender a executar aquelas tarefas que os animais fazem instintiva­mente, como respirar e dormir.

Ora, não é o meu caso. Agradeço a ajuda da sociedade para respirar e dormir mas cá me hei de arrumar. Eu continuo a ser um animal —como acho que se nota. E não é circunstân­cia que me entristeça, atenção. Posso ser um bicho selvagem, mas acabo de poupar £ 49.

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Luiza Pannunzio

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