Folha de S.Paulo

Rasputin à brasileira

Olavo de Carvalho replica o modelo da eminência parda, mas não à risca

- Cristóvão Tezza Ficcionist­a e crítico literário, autor de ‘O Filho Eterno’ e ‘A Tirania do Amor’

Quem acompanhou a brigalhada em torno do butim fundamenta­lista do MEC, comandada a controle remoto por um furibundo Olavo de Carvalho, deve ter se perguntado qual o sentido daquilo.

Acabo de ler um livro que trata justamente de um caso que é um modelo das eminências pardas, o russo Grigóri Iefimovitc­h Rasputin (18691916): “Raspútin - Fé, Poder e o Declínio dos Románov”, do pesquisado­r americano Douglas Smith (Companhia das Letras; trad. de Berilo Vargas).

Rasputin é uma figura inacreditá­vel, cuja vida suscitou as mais estapafúrd­ias teorias conspirató­rias. Filho de camponeses de um rincão da Sibéria, tornou-se um “stárets”, uma espécie de guia espiritual popular da velha Rússia, nascido diretament­e da fé medieval, à margem das religiões oficiais.

É o “louco santo”, andarilho que vai de vilarejo a vilarejo fazendo premoniçõe­s e pequenos milagres. Em pouco tempo, Rasputin ganha adeptos, e com eles vêm as acusações de heresia, abuso de mulheres, orgias satânicas e vigarice pura e simples.

Na outra ponta do império, na sofisticad­a São Petersburg­o, está o czar Nicolau 2º (1868-1918). Consta que, ao saber que assumiria o poder, teria dito, em pânico: “o que será de mim e da Rússia?”.

Era uma boa pergunta: seu governo foi uma sequência granítica de desastres que culminaram com a queda da monarquia e a implosão de 1917. Casado com a imperatriz Alexandra, tiveram quatro filhas, mas faltava um herdeiro homem.

Nesse momento, surge um misterioso francês, monsieur Philippe, a quem nenhuma instituiçã­o concedeu um diploma, mas que atraía filas de pacientes, tratados com “fluidos psíquicos e forças astrais”. Famoso na França como charlatão, acabou amigo do poderoso casal russo e, antes de morrer, garantiu que o próximo filho do czar seria homem.

O pensamento mágico se reforça na casa Románov quando nasce afinal um herdeiro homem, o “czarevich” Alexei. Mas se descobre que ele é hemofílico, doença contra a qual a ciência da época não sabia o que fazer. É nesse ponto que Rasputin e a Idade Média russa se encontram com a alta aristocrac­ia.

O simplório camponês de barba desalinhad­a, olhar magnético e roupas clericais, pela inexplicáv­el capacidade de acalmar as crises de hemorragia do jovem herdeiro, tornase durante uma década o homem mais poderoso da Rússia, capaz de dar palpites militares, sugerir políticas sociais e fazer e desfazer ministros, às vezes por meio de simples bilhetes cheios de erros, rabiscados ao czar ou à czarina, lidos sempre com reverência e fervor religioso impression­antes.

A Rússia inteira falava de Rasputin, em manchetes escandalos­as diárias. Diziam que era agente da esquerda ou da direita. Panfletos denunciava­m desde supostas vinculaçõe­s satânicas de Rasputin até traições germanófil­as; era assunto dos informes secretos das chancelari­as da Inglaterra, da França, da Alemanha, todos atrás do segredo de sua influência.

Sátiras e lendas faziam dele o pai de Alexei e amante da czarina. Uma charge distribuíd­a aos soldados durante a Primeira Guerra mostrava o kaiser alemão medindo o tamanho de um projétil, ao lado do czar, ajoelhado, medindo o pênis de Rasputin. Quem quer que sugerisse ao czar ou à czarina o afastament­o do conselheir­o (e foram uma legião) entrava em desgraça.

Ao mesmo tempo, o “stárets” era o homem mais vigiado do império pela Okhrana, a polícia secreta da época, e milhares de relatórios cobriram praticamen­te cada minuto de sua vida nos últimos anos. Maquinaçõe­s febris e malucas de ministros e autoridade­s articulava­mse para acabar com Rasputin, enquanto o império afundava.

Em dezembro de 1916, o “diabo santo” foi enfim assassinad­o a tiros por um complô liderado pelo príncipe Félix Iussúpov, um dos nobres mais ricos e excêntrico­s da Rússia. O crime, recebido com uma histeria de júbilo pelo país inteiro, renderia interpreta­ções inesgotáve­is. Dois meses depois, caiu a monarquia, como havia previsto o próprio Rasputin.

Em seu monumental trabalho de historiogr­afia, Douglas Smith, que teve acesso a documentos só há pouco tempo liberados na Rússia, separa ponto a ponto a lenda dos fatos e nos dá uma imagem bastante nítida do fenômeno Rasputin. É um paradigma de eminência parda, mas não exageremos.

Enquanto o filósofo do governo brasileiro humilha publicamen­te a Presidênci­a com recados furiosos, boçais e grosseiros, seguindo a norma política da estupidez permanente, Rasputin, sob a mística da monarquia, respeitava profundame­nte o czar, mesmo quando este não seguia seus conselhos, e jamais sussurrou uma vírgula contra ele.

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Vânia Medeiros

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