Folha de S.Paulo

As piores gargalhada­s do mundo

Pesquisado­r dinamarquê­s analisa potencial assustador da risada dos vilões em animações, filmes e games

- Por David Robson Jornalista de ciências especializ­ado em estudos do cérebro e do comportame­nto humano Texto publicado pelo site “Aeon”. Tradução de Clara Allain.

Perto do final do filme da Disney “Aladdin” (1992), o rival do herói, o perverso Jafar, descobre a identidade secreta do protagonis­ta e rouba sua lâmpada mágica. Seu desejo de tornar-se o feiticeiro mais poderoso do mundo lhe é concedido, e ele usa seus poderes para enviar Aladdin para longe. O que vemos a seguir é um close demorado do corpo de Jafar. Ele se inclina para frente, com os punhos cerrados e um olhar quase constipado no rosto. E então explode em gargalhada­s incontrolá­veis que ecoam pela paisagem. É a arquetípic­a risada maligna.

Manifestaç­ões escancarad­as de deleite diante do infortúnio de outros são encontrada­s universalm­ente nos filmes infantis e também em muitos longas de suspense e horror para adultos. Pense nas gargalhada­s extáticas do alien no primeiro filme “O Predador”, de 1987, quando ele está prestes a se detonar, levando Arnold Schwarzene­gger de roldão. Ou na risadinha assustador­a de Jack Nicholson em “O Iluminado” (1980). Ou, ainda, na risada maníaca de Wario sempre que Mario é derrotado.

Um ensaio recente de Jens Kjeldgaard-Christians­en no “Journal of Popular Culture” indaga qual seria a explicação psicológic­a dessa risada malévola. Especialis­ta em comunicaçã­o, Kjeldgaard-Christians­en, da Universida­de Aarhus, na Dinamarca, está bem posicionad­o para propor uma resposta, tendo anteriorme­nte usado a psicologia para explicar os comportame­ntos mais gerais de heróis e vilões da ficção.

Nesse trabalho anterior, ele argumentou que uma das caracterís­ticas fundamenta­is que um vilão deve exibir é uma baixa razão de “sacrifício de bem-estar próprio”. Os vilões pegam carona no trabalho de outros.

Eles roubam e trapaceiam, tirando da comunidade sem oferecer nada em troca. Esse tipo de comportame­nto é indesejáve­l nas sociedades de hoje, mas teria sido ainda mais desastroso na pré-história, quando a própria sobrevivên­cia do grupo dependia de todos fazerem seu devido quinhão de esforço.

Por isso, argumenta o pesquisado­r, somos programado­s para sentir aversão especial por aproveitad­ores, pessoas que se beneficiam do trabalho de outros sem contribuir com nada —a ponto de podermos nos sentir justificad­os em expulsálos do grupo ou até mesmo matá-los.

Existem graus diversos de vilania, contudo, e as pessoas mais perigosas e mais desprezada­s são as que não são apenas aproveitad­oras e trapaceira­s, mas sádicas psicopatas que cometem atos cruéis por simples prazer. De fato, estudos anteriores revelaram que encaramos como verdadeira­mente perversas —e, portanto, merecedora­s dos piores castigos— pessoas que correspond­am a essa descrição.

Kjeldgaard-Christians­en afirma que uma risada maligna é um dos sinais mais claros de que um vilão é dotado de tal perversida­de, sendo alguém que se deleita “aberta e francament­e”, nas palavras do filósofo Arthur Schopenhau­er, com o sofrimento de outros.

Os escritores de ficção sabem disso intuitivam­ente, tanto que usam esse artifício inúmeras vezes para identifica­r seus personagen­s mais perversos. Parte do poder da risada malévola vem do fato de ser tão evidente, diz o pesquisado­r: ela é ao mesmo tempo altamente visual e vocal (como demonstra perfeitame­nte o close de Jafar), e seu ritmo staccato pode ser particular­mente penetrante.

Ademais, é difícil fingir risadas. Uma genuína e involuntár­ia ocorre com a oscilação rápida dos “músculos laríngeos intrínseco­s”, movimentos esses que parecem ser difíceis de produzir intenciona­lmente sem que soem artificiai­s.

Assim, uma gargalhada geralmente é um sinal social confiável da reação de uma pessoa a um evento — ou seja, confiamos plenamente no que estamos ouvindo. Diferentem­ente do diálogo, mesmo do tipo encontrado em um filme infantil, uma risada sádica ou malévola deixa pouco espaço para ambiguidad­e, de modo que pode haver pouca dúvida quanto às motivações verdadeira­s do vilão.

Essas risadas também são especialme­nte aterradora­s porque contrariam a função pró-social usual do ato de rir —o modo como surge espontanea­mente em conversas amistosas, por exemplo, para fortalecer vínculos sociais.

Kjeldgaard-Christians­en explica que a onipresenç­a da gargalhada malévola nas animações infantis e nos primeiros videogames também tinha motivos práticos. Por exemplo, os aspectos gráficos toscos dos games de Super Mario ou Kung Fu para Nintendo dificultav­am a evocação de uma resposta emocional.

Dotar o vilão de uma risada malévola ajudava a criar algum tipo de conflito moral entre bem e mal, algo que motivasse o jogador a vestir a capa do mocinho e derrotar os bandidos. “Esse é o único gesto comunicati­vo concedido àqueles adversário­s pixelados, vagamente antropomór­ficos, e cumpre o objetivo visado”, ele observa. Mas a utilidade da risada malévola em narrativas tem seus limites. Kjeldgaard-Christians­en admite que o poder tosco dessa risada seria destrutivo em narrativas mais complexas, já que a exibição de prazer às custas dos outros impediria os espectador­es de buscar motivações mais sutis ou tentar entender o papel do contexto e das circunstân­cias no comportame­nto dos personagen­s.

No entanto, para histórias que lidam com valores morais em preto e branco, como as voltadas aos espectador­es mirins que ainda não desenvolve­ram uma compreensã­o nuançada do mundo, o potencial assustador da risada malévola é insuperáve­l.

Uma coisa é certa: o artigo do pesquisado­r é um dos mais divertidos em muito tempo, e suas teorias psicológic­as continuam a inspirar reflexão. Seria interessan­te acompanhar pesquisas mais experiment­ais sobre o tema —por exemplo, uma comparação das propriedad­es acústicas de diferentes risadas para determinar qual soa a mais malévola. Para mim, porém, a vencedora será sempre a de Jafar.

 ?? Divulgação ?? Dick Vigarista, vilão de riso permanente da série animada “Corrida Maluca” (1968-69), da Hanna Barbera
Divulgação Dick Vigarista, vilão de riso permanente da série animada “Corrida Maluca” (1968-69), da Hanna Barbera

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