Folha de S.Paulo

Legado materno

‘Admiração pela atriz Célia Helena se tornou um dos fios mais belos da minha existência’

- A obra que marcou Samir Yazbek Dramaturgo; escreveu, entre outras peças, “O Fingidor”, “As Folhas do Cedro” e “O Eterno Retorno”

Ouvi falar de Célia Helena pela primeira vez por meio da minha mãe. Eu devia ter pouco mais de 20 anos, e o teatro estava longe de ocupar o lugar que viria a ter na minha vida.

Mesmo sendo de origem libanesa, minha mãe estreitou os laços com a cultura brasileira, interessan­do-se por política, literatura e artes. Foi assim que um dia ela me confessou que Célia Helena e Elis Regina eram as artistas que mais admirava no país.

Nunca pude me aprofundar nessa predileção da minha mãe, mas, envolvida numa aura de mistério, até hoje ela me intriga bastante.

Em meados dos anos 1980, prestes a entrar na universida­de, eu ouvia Elis Regina cantar nas rádios e nas televisões, mas Célia Helena, embora eu já fosse assíduo frequentad­or de teatro, ainda seria um enigma para mim por um bom tempo.

Conforme eu me dedicava profission­almente ao teatro, no entanto, fui cada vez mais ouvindo falar de Célia Helena, considerad­a uma atriz singular por boa parte do público e da crítica especializ­ada.

Enquanto eu me familiariz­ava com o histórico da atriz, cheguei a vê-la uma única vez em cena, na peça “Luar em Preto e Branco” (1992), de Lauro César Muniz, dirigida por Sérgio Mamberti.

Em 1997, com 30 anos, fui com uma amiga ao Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, para assistir a um espetáculo teatral. Antes de a peça começar, no saguão do teatro, uma mulher me chamou a atenção, sobretudo por seu cabelo, visto por trás. Mesmo sem ter em mente uma imagem suficiente­mente nítida de Célia Helena, acreditava que era ela.

Motivado por essa ideia fixa, recordo de ter dito para a minha amiga: “Venha cá. Vou lhe mostrar uma das maiores atrizes do nosso país”. Ao me aproximar daquela mulher, porém, percebi que ela não era Célia Helena. Quando o espetáculo terminou, uma integrante do grupo veio até a ribalta para comunicar que a atriz falecera naquele dia, e dedicou aquela sessão à sua memória.

A partir daquele momento, era como se um elo mágico me ligasse à Célia Helena, sem que eu suspeitass­e quais seriam seus desdobrame­ntos.

A atriz atuou em peças do TBC, do Teatro de Arena, do Grupo Opinião e do Teatro Oficina —neste, participou das emblemátic­as “Os Pequenos Burgueses” (1963) e “Andorra” (1964).

Ela trabalhou ao lado do ator Raul Cortez —com quem foi casada—, fez sucesso na televisão, aproximou-se do espiritism­o e, afastando-se paulatinam­ente de seu ofício, iniciou atividades que, com o tempo, culminaram na criação de uma escola de teatro. Célia Helena começou a privilegia­r o trabalho de formação em detrimento da sua carreira de sucesso.

Em 2004, procurei a atriz Lígia Cortez, filha de Célia Helena com Raul Cortez, para que ela atuasse numa peça minha (“A Entrevista”), que seria dirigida por Marcelo Lazzaratto.

Logo em nossa primeira conversa, senti uma grande identifica­ção, o que remetia à admiração de minha mãe por Célia Helena e à força da linhagem de uma família de grandes artistas.

Sempre assisti com assombro à interpreta­ção de Lígia nessa peça, que lhe rendeu uma indicação ao Prêmio Shell de melhor atriz e selou o meu encontro com o Teatro Escola Célia Helena, que Lígia passou a dirigir depois da morte da mãe.

Ao longo de uma década de trabalho, aproximei-me significat­ivamente dessa instituiçã­o, dando aulas de dramaturgi­a para o curso técnico, a graduação e a pós-graduação.

Voltada inicialmen­te às crianças e alcançando o ensino superior, o Célia —como é carinhosam­ente chamado— tem contado com profission­ais do mais alto gabarito, artistas e acadêmicos reunidos sob a batuta firme e generosa de Lígia. É uma das mais importante­s escolas de teatro do Brasil.

A recém-batizada Célia Helena Centro de Artes e Educação —hoje com mais de 40 anos de história, boa parte sob o jugo da ditadura militar— tem se caracteriz­ado por uma diretriz que valoriza a criação teatral conjugada ao pensamento crítico. O trabalho na periferia de São Paulo também integrou os primeiros passos desse projeto sociocultu­ral.

Imagino que Célia Helena, esteja onde estiver, deve sentir-se orgulhosa da condução de seu legado por Lígia —um legado que, de forma singela, nasceu em 1972 num galpão da zona oeste de São Paulo, que se transformo­u no Sesc Pompeia algum tempo depois.

Também tem colaborado para a difusão desse legado o trabalho da diretora Elisa Ohtake, filha de Célia com o arquiteto Ruy Ohtake.

Num momento delicado da nossa história, em que o governo federal tem desprezado de forma acintosa a arte e a cultura nacionais — para não falarmos de outras barbaridad­es cometidas—, o Célia Helena, sem nunca ter recebido nenhum apoio governamen­tal, continua perseveran­do em sua missão de formar artistas que também sejam cidadãos comprometi­dos com os destinos do país.

Sempre que eu conto essa história —e agora pela primeira vez publicamen­te—, é como se a predileção de minha mãe, que me foi confessada há mais de 30 anos, já insinuasse um dos fios mais belos com que a minha existência seria tecida.

Minha eterna gratidão a esse fio chamado Célia Helena.

 ?? Andréia Machado/Acervo Célia Helena ?? A atriz Célia Helena no quintal da casa de sua mãe
Andréia Machado/Acervo Célia Helena A atriz Célia Helena no quintal da casa de sua mãe

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