Folha de S.Paulo

Tuítes, bíblias e balas

Adversário­s do ‘marxismo cultural’ promovem proselitis­mo agressivo

- Angela Alonso Professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to. É autora de “Flores, Votos e Balas”

“Em nome da Santíssima Trindade” —assim se abre a primeira Constituiç­ão brasileira, de 1824. Seu miolo continha uma religião de Estado. Visava menos a exclusão inquisitor­ial que operar como meio de controle social.

A Igreja Católica tocava os serviços estatais de registrar quem nascia, casava, morria. Votava-se em paróquias e se moldavam corações e mentes cristãos em capelas e escolas. Os religiosos, mais que Deus, estavam em toda parte, a política incluída.

Ainda no Segundo Reinado, o tema foi à berlinda. Seculariza­r o Estado virou bordão em discursos parlamenta­res, artigos de imprensa e projetos de lei de modernizad­ores.

Um argumento caracteriz­ava o Estado teocrático como típico de tempos de obscuranti­smo, a Idade Média, e advertia que a sociedade moderna se alicerçava na ciência, em vez de na fé revelada. O ministro da Educação conhece o debate: no mestrado estudou alguns de seus participan­tes positivist­as.

Outra linha era a liberal clássica, da liberdade de consciênci­a. A tolerância à religião dos outros seria a única maneira de se proteger da imposição da crença alheia. Liberal —e agora autodeclar­ado evolucioni­sta— o ministro da Economia deveria concordar com o postulado.

O Império caiu, os dois raciocínio­s seguem de pé.

A República inscreveu em sua Constituiç­ão inaugural a laicidade do Estado, deixando a religião como decisão de foro íntimo. A vigente, de 1988, registrou em seu preâmbulo a expressão “sob a proteção de Deus”, mas sem impor a ninguém o exercício de uma fé particular, menos ainda o proselitis­mo religioso por meio de política pública.

A anunciada número dois da pasta da Educação disso diverge do texto constituci­onal. Em entrevista à TV Band, em 2014, Iolene Maria de Lima explicou sua pedagogia: “uma educação baseada na palavra de Deus, [...] onde a geografia, a história, a matemática vai [sic] ser vista na ótica de Deus [...]. O aluno vai aprender que o autor da história é Deus, o realizador da geografia é Deus. Deus fez as planícies [...], Deus fez o clima, [...] o maior matemático foi Deus”. Seu objetivo era ver “toda a disciplina do currículo escolar organizada da ótica das escrituras”.

Lima dirigia então o colégio Inspire, em São José dos Campos. Sendo escola privada, é escolha particular ali depositar reais e cérebros de filhos.

Na escola pública, a opção não é facultativ­a. A escolariza­ção estatal beneficia sobretudo aqueles a quem faltarão recursos para fugir da doutrinaçã­o religiosa compulsóri­a.

E, mais grave, se a escola pública seguir tais princípios ferirá de morte a laicidade do Estado.

Mesmo que Lima não tenha sido confirmada como secretária-executiva do Ministério da Educação, a simples cogitação de perfil como o seu para cargo de tamanha relevância mostra que o governo não traz sua religiosid­ade peculiar apenas no slogan.

Há aí um projeto de escolariza­r as próximas gerações de acordo com certo credo. Uma pedagogia autoritári­a, capaz de penetrar órgãos governamen­tais e orientar nomeações, licitações e compras de material didático.

É paradoxal que os que acusam adversário­s da lavagem cerebral do “marxismo cultural” se empenhem em inculcar seus próprios valores nos menos habilitado­s para questioná-los —as crianças, que ainda estão formando convicções.

Proselitis­mo agressivo, que trafega para além das cartilhas. Prolonga-se em braços armados contra infiéis inimigos da pátria, como o atesta a proximidad­e governamen­tal com as milícias, o empenho em armar a população e a condescend­ência a extermínio­s sumários.

Soa cacofônico falar em Deus e pregar a violência, mas a história está cheia de guerras religiosas. Nelas, ganhamse almas e vendem-se armas, o que pode rimar tanto com desígnios divinos quanto com negócios terrenos.

A questão é até quando o estrato tão alto quanto diminuto que gere os mercados vai pagar essa elevada taxa de administra­ção para obter seu ansiado “ambiente de negócios”.

Se os bolsonaris­tas de coração não caírem em seis meses, como previu seu astrólogo, podem avançar no que, em Washington, Paulo Guedes chamou de revolução. Talvez o ministro tenha sido apenas irônico, crendo-se no controle do exército dos eleitos, ou tarde em admitir que, na política, como na interpreta­ção dos textos sagrados, seus aliados são literais.

Nada garante que não visem mesmo criar sua “nova era” teológica e belicosa, missionári­os empenhados em revolucion­ar as mentes com tuítes, bíblias e balas.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil