Folha de S.Paulo

O prazer da desleitura

- Por Ricardo Pacheco Psiquiatra e psicanalis­ta, é doutor em saúde coletiva pela Unicamp

Em réplica a análise de Christian Dunker publicada na Ilustríssi­ma no dia 10 de março, autor retoma livro de Ricardo Goldenberg a respeito do psicanalis­ta francês Jacques Lacan para debater as possibilid­ades de leitura e de fruição de um texto a partir da complexa relação entre leitores e autores

Por que ler “Desler Lacan” (ed. Instituto Langage), livro recém-lançado do psicanalis­ta Ricardo Goldenberg? Antes de mais nada, porque é um prazer. Um prazer do tipo que Roland Barthes (uma das referência­s, das várias que vale a pena seguir ali) revela em “O Prazer do Texto”. Barthes nos diz de cara que o leitor é uma certa espécie prazerosa de anti-herói, aquele que não se ocupa em demasia com as grandes façanhas. “(...) Esse contra-herói existe, é o leitor do texto; no momento em que se entrega a seu prazer.”

Sublinho aqui esse gesto de entregar-se do leitor, de depor as armas. Ler é deixar-se ler e disso brota um deleite, ou, no dizer de Barthes, uma espécie de fruição que resulta da entrega a esse jogo de leitura para o qual os dados ainda não estão lançados.

Desler não é apenas encontrar nas páginas do livro o que já se sabe, ou fazer do que não se sabe a exegese. Tal modalidade de se haver com os escritos é necessária, por certo, uma vez que há uma margem de rigor, de precisão conceitual e epistemoló­gica indispensá­veis para o exercício da “desleitura”. Mas não é suficiente, ao menos para um psicanalis­ta, advertido dos riscos de fazer do ego seu único fiador.

Barthes nos ensina que o prazer do texto acontece no choque com um outro modo de ler, também necessário: aquele que resulta de um escrito cuja escritura me deseja, a mim, leitor. Essa seria a segunda margem possível, mas não obrigatóri­a, de uma leitura, que se contrapõe à primeira: aquela que depende do uso canônico da língua.

A fruição do leitor não radica na escolha de uma ou outra vertente, mas precisamen­te em poder deixar aberta a fenda entre ambas. Cito: “(...) não é a violência que impression­a o prazer, a destruição não lhe interessa; o que ele quer é o lugar de uma perda, é a fenda, o corte, a deflação, o fading que se apodera do sujeito no imo da fruição”. A desleitura não é um método, um tipo enunciável de exercício erudito. Desler Lacan pode também ser erótico.

Na outra margem, o livro que comento marca também uma posição em relação a Lacan e suas próprias leituras, ao que se faz quando se lê Lacan e ao que outras “desleitura­s” fazem em nome de Lacan.

A segunda razão para se ler “Desler Lacan” concerne à própria interrogaç­ão sobre a leitura e a escrita, que lhe é correlativ­a. Aqui saímos da literatura e entramos no campo próprio que Goldenberg nos propõe, a saber, a psicanális­e e seu agente, o psicanalis­ta.

Um psicanalis­ta e as consequênc­ias implacávei­s que sua clínica lhe devolve, no seu árido cotidiano. Reflexão sobre os pressupost­os que o orientam e determinam suas intervençõ­es. Interrogar-se sobre a leitura e sua aproximaçã­o com aquilo que especifica a tarefa de um analista é uma das linhas cortantes percorrida­s aqui com rigor pop, de fio a pavio.

O psicanalis­ta, nos disse Lacan, é um qualquer. E, como todos nós, ele não sabe o que diz. Mas sabe, ou deveria saber o que faz. Neste ponto me parece que o texto de Freud é preservado em sua eficácia para esta “desleitura”. Freud tratou o sonho como rébus, o ato-falho como jogo de palavras, o sintoma como texto, e a virulência dessa descoberta não é negada por “Desler”. Ao contrário, ela é afirmada com insistênci­a.

Harold Bloom, inventor do termo para a crítica literária, toma a “desleitura” não como um procedimen­to, mas antes uma tentativa de cercar o que interessa, a pergunta de como surge um autor. O que é um autor e quando e como pode-se chamá-lo assim por mérito.

No caso do psicanalis­ta, perguntar a quem pertence o ato falho é correlativ­o ao fato de que esse ato o é de leitura. Mas não da leitura do analisando em suas recônditas e recalcadas intenções, senão do registro do sucesso deste pequeno acontecime­nto de acertar, sem dar-se conta, o alvo que parece ter sido “falhado”.

É esta leitura textual que permite formular a desconheci­da e verdadeira questão daquele que fala, e que se descobre autor apesar de si mesmo. O único atestado de validade de tal leitura é a surpresa que impacta a ambos, analista e analisando, ao mesmo tempo.

Se para o crítico norte-americano “desler” é uma forma de pensar a fundação de uma autoria, também o é para Goldenberg. Com um adendo que, na minha opinião, é a terceira e última razão para debruçar-se sobre este livro.

O autor parece-me mais interessad­o na relação com outros leitores, que assumam suas leituras como outras tantas autorias, do que com um intermináv­el debate de mestres. Questão oportuna e crucial, visto que o que está em jogo nessa discussão é a sobrevivên­cia da psicanális­e, tão vilipendia­da no campo das práticas “psi”.

A argumentaç­ão de Harold Bloom, em todo caso, caminha pela via do que ele denomina precursor e da relação angustiada de cada autor com aqueles que o precederam e o teriam influencia­do. Posta a ressalva de que não há nenhuma anteriorid­ade histórica em jogo nesta noção, o precursor, para o crítico (e para todos nós) é um outro, sempre atual. Digamos (apressadam­ente), a “cultura” em sua alteridade e anteriorid­ade, na medida em que ela nos determina.

Isso ajudaria a entender o que o crítico diz ser o correlato da “desleitura”: a desvirtuaç­ão de uma herança. E o que isso significa para um psicanalis­ta? Que a psicanális­e desde sempre e por origem é política, nem mais, nem menos. Ela exige o reconhecim­ento da tagarelice desse outro que nos habita.

Ora, seria possível pensar o mesmo assunto com outra crítica de literatura, essa também psicanalis­ta: Shoshana Felman. Ela considera ler uma prática que pode ser revolucion­ária, e esse ponto me parece importantí­ssimo e inferível no livro que comento.

Felman nos diz que o inconscien­te é o leitor, não apenas o ego de quem lê. Para ela, o inconscien­te lê e escreve, pois aqui, tal como num desenho de Escher, um é a borda do outro. E o que lê o inconscien­te? O que eu não podia saber que dizia enquanto tentava dizer outra coisa.

“Desler Lacan” propõe, enfim, a quem aprouver, um debate de leitores-autores, que pode levar à polêmica, desde que se entenda esta última não como o prenúncio da guerra, pois assim manteríamo­s intacta a ideia de que da cova do psicanalis­ta francês brotaria a derradeira palavra sobre o verdadeiro Lacan.

E saímos por onde se entra. Eis o primeiro paragrafo: “Lacan está morto. O que ele disse não depende mais dele. Depende de nós, de mim. Escrevo para pensar as consequênc­ias teóricas e clínicas do que entendi daquilo que li, do que foi recolhido do que ele teria dito, e para debater com outros, que fizeram com que Lacan dissesse o contrário do que eu encontro nos escritos que lhe são atribuídos”.

O psicanalis­ta, nos disse Lacan, é um qualquer. E, como todos nós, ele não sabe o que diz. Mas sabe, ou deveria saber o que faz. Neste ponto me parece que o texto de Freud é preservado em sua eficácia para esta “desleitura” O livro propõe um debate de leitoresau­tores, que pode levar à polêmica, desde que se entenda esta última não como prenúncio da guerra, pois assim manteríamo­s a ideia de que da cova do psicanalis­ta brotaria a derradeira palavra sobre Lacan

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