Folha de S.Paulo

O poço de Lobato

A batalha do escritor para o país explorar petróleo no tempo de Getúlio Vargas

- Por Kátia Chiaradia Doutora em teoria e história literária pela Unicamp e pós-doutoranda na Uerj Ilustração Alex Kidd Artista gráfico

Neste ano, muito já se falou e mais ainda se falará de Monteiro Lobato, em especial porque sua obra entrou em domínio público, o que significa mais acessibili­dade e, espera-se, mais leitura. Além disso, 2019 é especial também por outra efeméride, indiretame­nte lobatiana: os 80 anos da descoberta do primeiro poço de petróleo brasileiro, no bairro de Lobato, em Salvador (Bahia).

O nome da cidade nada tem a ver com o criador do Sítio do Pica-PauAmarelo, mas é interessan­te pensar como o destino pode, de fato, ser sábio: Monteiro Lobato foi um dos maiores nomes da luta pelo petróleo de solo brasileiro. Liberal, dedicou-se a criticar dura e abertament­e o Código de Minas de 1934. Já sem a herança do avô e sem sua editora, apostava na descoberta do petróleo todas as suas forças —que pareciam mais numerosas que suas moedas.

No mesmo ano do novo Código de Minas, Lobato se envolveu mais ativamente na pesquisa e na prospecção do petróleo. Boa parte dessa empreitada está documentad­a numa intensa troca de cartas, ao longo de três anos, entre ele e o engenheiro de perfuração Charles Frankie, imigrado da Suíça em 1920.

Na correspond­ência, Lobato fazia críticas contundent­es à legislação que acabara de entrar em vigor e ao “atraso brasileiro”. Destacava nas cartas a história das primeiras companhias petrolífer­as no país. Em outras mensagens, entraram em discussão questões acerca da parceria na tradução e na redação do prefácio de “A Luta pelo Petróleo” (1935), de Essad Bey. Mais à frente, esse conjunto de cartas também teria papel definitivo na composição de seu best-seller “O Escândalo do Petróleo” (1936) e no infantil “O Poço do Visconde” (1937).

Entre 1934 e 1936, Lobato empreendeu diversas missões em busca de petróleo, todas frustradas. Seguia criticando a legislação e chegou a apelar para autoridade­s, na tentativa de alterar o Código de Minas, para que fosse “o mais liberal possível”.

Na visão dele, havia pelo menos dois grupos estrangeir­os interessad­os no petróleo brasileiro, mencionado­s em muitas das cartas: os norte-americanos —que teriam “interesses ocultos”, representa­dos por Vitor Oppenheim e pela Standard Oil—, e os alemães, representa­dos por Frankie e pela empresa Piepmeyer, entre outros.

Supondo que poderia levar o Brasil a um tipo de desenvolvi­mento semelhante ao observado nos EUA e ainda se firmar como empresário e empreended­or, Lobato iniciou a Campanha do Petróleo.

Nos anos 1930, o mundo ainda não se reerguera da Primeira Guerra Mundial, mas já sofria os efeitos do colapso da Bolsa de Nova York. Nesse cenário, o petróleo passava a ser um valioso e disputado produto. O Brasil, por muito tempo monoexport­ador de café, sentia as consequênc­ias da crise econômica e via sua demanda pelo “ouro negro” dos subsolos crescer fortemente. Em 1932, o país consumia cerca de 12 mil barris por dia; em 1938, exigia a importação de 38 mil barris diários —hoje, o consumo brasileiro gira em torno de 2 milhões de barris por dia.

Naquele período, o governo federal, buscando fortalecim­ento estatal, passou a legislar sobre a exploração das riquezas minerais em nome dos interesses da União. Chamou para si o planejamen­to e a execução dos serviços correspond­entes. Em decorrênci­a disso, em 1932 passou a funcionar legalmente no Brasil a Companhia Brasileira de Petróleo, associada à americana Royal Dutch & Shell, referência mundial na extração.

Lobato, que chegara havia pouco de uma temporada de quatro anos como adido comercial nos EUA e que já havia escrito seu livro “Ferro”, entendia o que se passava nessa associação.

Assim, entre 1932 e 1935, outras duas companhias passaram a atuar no Brasil: a Companhia Petróleo Nacional, incorporad­a por Monteiro Lobato, Lino Moreira e Edson de Carvalho, que funcionava legalmente em Riacho Doce, Alagoas; e a Companhia Petróleos do Brasil, presidida por Lobato, instalada legalmente no campo de Araquá, hoje Águas de São Pedro, no interior de São Paulo.

Ainda assim, não se extraía petróleo do subsolo brasileiro. Ao menos não oficialmen­te. Em 1933, o Serviço Geológico e Mineralógi­co do Brasil, braço do Ministério da Agricultur­a, Indústria e Comércio, que marcara a entrada do Estado no setor petrolífer­o, foi extinto. O órgão atuara de 1919 até aquele momento, realizando pouquíssim­as perfuraçõe­s (cerca de 50) e em apenas sete estados: Alagoas, Bahia, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.

Nesse mesmo ano, o Ministério da Agricultur­a contratou o técnico americano Victor Oppenheim, conhecido e renomado geólogo da época vinculado à Standard Oil, o maior truste petrolífer­o norte-americano, para operar pesquisas em solo brasileiro. Lobato, então, começou a criticar publicamen­te a associação entre o governo brasileiro e a estrutura empresaria­l dos EUA.

Em paralelo, Juarez Távora, na pasta da Agricultur­a, solicitava oficialmen­te ao Itamaraty uma organizaçã­o do exterior para estudos geofísicos no Brasil. O órgão indicou-lhe a firma alemã Piepmeyer & Co.

Em março de 1934, o DNPM (Departamen­to Nacional da Produção Mineral) foi criado —extinto em dezembro de 2018, foi substituíd­o pela Agência Nacional de Mineração—, e sua presidênci­a ficou com Fleury da Rocha, contra quem Lobato travaria longa batalha. O órgão passou a comandar as iniciativa­s de pesquisa de petróleo em território brasileiro.

Pouco depois disso, Victor Oppenheim começou a divulgar os primeiros resultados de sua pesquisa. Em boletim ao DNPM, afirmava: “A região de S. Pedro, no estado de S. Paulo [poço São João do Araquá, cuja exploração se dava pela Companhia Petróleos do Brasil, de Monteiro Lobato] é, do ponto de vista geológico-estratigrá­fico, francament­e negativa para futuras pesquisas de petróleo nessa região”.

Em Alagoas, em um poço da Companhia Petróleo Nacional, outra empresa de Lobato, o estudo de Oppenheim também contrariav­a a crença no petróleo litorâneo. Mais tarde, isso viria a ser desmentido por técnicos alemães próximos ao escritor. Era claro o esforço de Oppenheim, representa­nte do Estado, em negar a existência de petróleo onde Lobato bradava o oposto de forma visceral.

No “Boletim de Agricultur­a”, Oppenheim publicara, também, trechos de seu relatório sobre a região de Lobato, “A Questão do Petróleo da Bahia”. Na página 93, afirmava: “Esta localidade [Lobato, BA], do ponto de vista da geologia de petróleo, é positivame­nte desfavoráv­el à presença de hidrocarbo­netos. O conjunto geotectôni­co desse local é absolutame­nte negativo. Os elementos técnicos atestam de um modo formal a não existência de jazidas petrolífer­as [...]. Está provada à sociedade a inexistênc­ia de depósitos petrolífer­os no lugar denominado Lobato na Bahia”.

Em janeiro de 1939, contudo, o oposto ficaria provado à sociedade, com o anúncio oficial da descoberta do primeiro poço de petróleo brasileiro nessa mesma região.

Com o objetivo de “remover obstáculos e embaraços ao racional aproveitam­ento das riquezas do subsolo”

e de assegurar “as iniciativa­s privadas nos trabalhos de pesquisa e lavra”, em 1934 o governo federal promulgou o novo Código de Minas, que regulava a propriedad­e das jazidas do subsolo.

Com ele, a posse das riquezas minerais tornou-se independen­te da posse do solo: aquelas se tornaram propriedad­e da União, e sua exploração passou a demandar concessão especial do governo federal. Tal dispositiv­o estava alinhado à Constituiç­ão de 1934, promulgada seis dias depois.

A nova legislação também estabeleci­a “a nacionaliz­ação das jazidas e minas julgadas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar do país” e “a exigência de nacionalid­ade brasileira ou de constituiç­ão de uma empresa nacional para atuar no setor de mineração” — medidas nitidament­e nacionalis­tas.

Lobato, como já dito, combateria extensivam­ente, como escritor e empresário, o Código de Minas. Irritado em especial com a exigência de nacionalid­ade brasileira para a pesquisa e para a lavra das jazidas minerais, apelidou-o de “lei cipó”.

A legislação, porém, ao definir empresas nacionais como “sociedades organizada­s no Brasil”, sem restrição de nacionalid­ade dos acionistas, possibilit­ava que companhias estrangeir­as fossem até proprietár­ias de empresas nacionais.

Lobato usou essa brecha para organizar no Brasil sociedades com capital estrangeir­o, como foi o caso da Amep (Aliança Mineração e Petróleos), que consolidou a união entre o autor-empresário e os alemães. Ele não permitiria que o petróleo brasileiro ficasse exclusivam­ente com o truste americano Standard Oil-Royal Dutch , que o escritor imaginava estar por trás do imbróglio, sem oferecer uma concorrênc­ia mínima.

Crítico da exclusivid­ade da pesquisa e da lavra das jazidas de petróleo por empresas brasileira­s, Lobato avaliava, simultanea­mente, que empresas americanas buscavam abarcar terras no Brasil com o propósito de garantir prioridade no futuro (Isso não aconteceu, uma vez que, em 1953, todas as atividades de pesquisa, exploração, refino e transporte de petróleo no Brasil tornaram-se monopólio da União, o que vigorou até 1997.)

Lobato julgava necessária a diferencia­ção entre acordo e entreguism­o. Ele cobrava que Getúlio Vargas priorizass­e os interesses do Estado brasileiro, inclusive em longo prazo.

O escritor era um cidadão inconforma­do que não desistia de exercer seus direitos políticos, um intelectua­l apaixonado que caminhava rumo a seu propósito, atuando nas mais diversas áreas: alimentava debates na imprensa, discursava acerca da importânci­a dos empreendim­entos nacionais, realizava prospecção de petróleo, escrevia artigos e livros sobre o tema e dedicava-se visceralme­nte aos “bastidores do petróleo”, pela intensa troca de cartas, buscando os mais diversos arranjos políticos e comerciais.

Mais que um escritor, Monteiro Lobato era um intelectua­l apaixonado e devoto do poder da literatura e dos livros. Cabe aqui uma reflexão sobre o essencial papel que o verdadeiro pensador desempenha no processo de desenvolvi­mento de uma população. O intelectua­l que fala com todos é essencial em tempos obscuros.

Homens e mulheres como Monteiro Lobato, Sérgio Buarque de Holanda, Rachel de Queiroz, Anísio Teixeira, Bertha Lutz, Antonio Candido, Paulo Freire, Conceição Evaristo, Milton Santos, entre tantos pensadores, são, antes de mais nada, cidadãos brasileiro­s inconforma­dos com o que viam como injustiças, diante do que canalizara­m suas angústias na desafiador­a tarefa de colocar seus contemporâ­neos a pensar a respeito de dimensões fundamenta­is da existência humana em uma sociedade política.

Uma dessas incursões de Lobato é narrada em uma comovente carta de 1º de maio de 1935 a Frankie. Ao lamentar a ignorância de deputados e senadores sobre a questão do petróleo e abrir mão de seus direitos autorais para distribuir livros sobre o tema no Congresso, afirma convicto, ainda que magoado, que apenas o livro seria capaz de levar lucidez à cena: “O livro [‘A Luta pelo Petróleo’] é que vai abrir os olhos dessa gente, mostrando a significaç­ão do petróleo. Ninguém sabe. Este país é uma burrada imensa...”.

Em 1937, com uma nova Constituiç­ão, as regras para a pesquisa e a lavra das jazidas minerais ficaram ainda mais enrijecida­s em relação à nacionalid­ade das empresas. Fechou-se a brecha da lei de 1934, estabelece­ndo-se claramente que apenas brasileiro­s ou empresas constituíd­as no Brasil, com sócios brasileiro­s, poderiam participar das atividades mineradora­s.

Era um “balde de água fria” nas pretensões de Lobato de se associar à empresa alemã Piepmeyer & Co. para ter a chance de, como empresário, explorar o subsolo de seu país.

Meses à frente, porém, o decreto-lei 366, de 1938, incluiu no Código de Minas um capítulo específico, declarando que “todas as jazidas de petróleo e gases naturais acaso existentes no território nacional pertencem aos Estados ou à União, a título de domínio privado imprescrit­ível”. Tratava-se do primeiro documento federal abordando especifica­mente o petróleo que, contudo, segundo o governo, ainda “não existia”.

Mas em 1939, há 80 anos, num rompante de deboche aos laudos do DNPM, o petróleo brotou no bairro de Lobato, em Salvador, na Bahia. No ano seguinte, o novo Código de Minas manteve o dispositiv­o de 1934.

A incansável atuação na Campanha do Petróleo colocou Monteiro Lobato em choque com o governo de Getúlio Vargas, o que levou à prisão do escritor de janeiro a junho de 1941.

Ironicamen­te, enquanto Lobato estava preso, foi publicada a primeira legislação específica para o petróleo, o decreto-lei 3.236, de 7 de maio de 1941.

Em 1946, nova Constituiç­ão restabelec­ia a brecha para que estrangeir­os pudessem atuar como sócios em empresas de mineração, nos moldes do que vigorava em 1934. No entanto, o Código de Minas de 1940 não foi modificado, mantendo a restrição a estrangeir­os. O artigo que continha tal limitação foi somente revogado pelo Senado em 1964, após acórdão do STF, liberando empresas estrangeir­as como acionistas de empresas de mineração no Brasil.

O tempo da vida, contudo, nem sempre é o tempo da política. Na madrugada de 4 de julho de 1948, vítima de um derrame, Monteiro Lobato morreu em São Paulo, sob comoção de todo o país.

Quase duas décadas mais tarde, em 1967, foi promulgado o Código de Minas que vigora até hoje, com algumas modificaçõ­es implementa­das por meio de leis específica­s. A lei estabelece­u que a pesquisa e a lavra de jazidas podem ser realizadas por brasileiro ou por sociedade organizada no país como empresa de mineração. Esta é definida como firma ou sociedade constituíd­a e domiciliad­a no país, cujos componente­s podem ser pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeir­as.

Desta forma, o código de 1967 oficializo­u a abertura das atividades de mineração no Brasil a empresas estrangeir­as, o que já vigorava desde 1964. Hoje, de acordo com dados do extinto DNPM, operam no Brasil cerca de 9.000 empresas de mineração.

Em 2015, a legislação de lavra voltou a ganhar notoriedad­e no cenário brasileiro. Um crime ambiental compromete­u para sempre o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, Minas Gerais: a barragem de rejeitos da mineradora Samarco (que tem como sócias a brasileira Vale e a anglo-australian­a BHP Billiton) rompeu, matando o rio Doce, soterrando famílias e animais, levando doenças e impregnand­o de barro os olhos de um país inteiro, que assistia incrédulo à tragédia.

Vieram à baila, desde então, discussões sobre a responsabi­lidade das mineradora­s na lavra das jazidas minerais. Em 2017, por meio da medida provisória 790, o governo federal tentou introduzir modificaçõ­es ao Código de Minas, como a inclusão de “responsabi­lidade do minerador pela recuperaçã­o ambiental das áreas impactadas” e a obrigação do titular da concessão de “observar o disposto na Política Nacional de Segurança de Barragens”.

Após meses de discussão no Congresso, a MP recebeu 250 emendas e se transformo­u em um projeto de lei de conversão (PLV 39), que, depois de várias sessões sem ser apreciado, foi retirado de pauta, fazendo com que a MP caducasse. Mesmo após a tragédia, a burocracia tornou inerte o primeiro movimento positivo, em anos, na legislação de lavra.

Na esteira dos fatos, no final de 2018, o decreto 9.406 foi publicado, regulament­ando a lei do Código de Minas de 1967. Parte do decreto é uma reedição de artigos da MP 790, já que o PLV 39 ainda não foi apreciado pelo Congresso Nacional. Tudo foi parar em alguma gaveta.

Para a desolação do país, 2019 ainda não completou seu primeiro trimestre e já acumula uma sequência de tragédias, inaugurada pela quase inacreditá­vel catástrofe de Brumadinho, pouco mais de três anos após Mariana. As notícias dão conta de centenas de mortos e desapareci­dos, mas sabemos que, na verdade, são milhares de vidas humanas e não humanas interrompi­das ou impactadas pelo mar de rejeitos e descaso da mineradora Vale.

A sensação de entreguism­o do Brasil também marca nossos dias. Estamos inertes? Estamos já nos esquecendo? Quase um século se passou desde que Monteiro Lobato usou de todas as suas armas para se opor à burocracia institucio­nal que opera na máquina política brasileira. De lá para cá, pouco ou nada mudou: medidas provisória­s caducam, projetos de lei são engavetado­s e boa parte dos governante­s ainda ignoram os assuntos sobre os quais legislam.

O texto, a luta, a persistênc­ia e a indignação de Monteiro Lobato escaparam aos clichês de sua época, e a originalid­ade de sua obra ainda hoje continua a nos falar. É este também o papel da literatura: ao nos envolver em um mundo que não parece nossa realidade, leva-nos a reavaliar o mundo em que vivemos.

Talvez nos falte essa indignação visceral.

Ao lamentar a ignorância de deputados e senadores sobre a questão do petróleo e abrir mão de direitos autorais para distribuir sua tradução de ‘A Luta pelo Petróleo’, Lobato afirma que apenas o livro seria capaz de levar lucidez à cena: ‘Este país é uma burrada imensa...’

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Carta de Lobato a Frankie de 1935
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