Folha de S.Paulo

Mais Médicos encolhe nas regiões mais populosas

Governo não tem incluído municípios maiores em editais e diz que haverá novo programa na saúde

- Natália Cancian e João Pedro Pitombo

Governo Bolsonaro optou por renovar vagas apenas em cidades classifica­das de maior vulnerabil­idade, até que haja a substituiç­ão do Mais Médicos por programa a ser criado.

Cidades de perfis maiores, como capitais, municípios em regiões metropolit­anas e outras com mais de 50 mil habitantes, têm ficado de fora de editais e de reposições.

Antes considerad­o um dos principais programas do Ministério da Saúde, o Mais Médicos registra hoje locais com “apagão” de profission­ais e enxugament­o de parte de suas vagas, processo que tende a se agravar em cidades de grande porte e em outros municípios no Sudeste, Sul e Centro-Oeste.

A situação ocorre devido a uma decisão do governo de prorrogar e renovar vagas apenas em cidades classifica­das como de perfis 4 a 8, de maior vulnerabil­idade, até que haja a substituiç­ão do Mais Médicos por um novo programa.

Cidades de perfis 1 a 3, como capitais, municípios em regiões metropolit­anas e outras com mais de 50 mil habitantes, têm ficado de fora de editais e de vagas de reposição.

Dados obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação apontam que, de 18.240 vagas autorizada­s no Mais Médicos, 7.859 estão em cidades com esses perfis 1 a 3.

Dessas, 1.855 estão desocupada­s e já ficaram de fora de dois editais lançados neste ano. Outras 6.004 ainda têm profission­ais —boa parte delas, porém, deve ter contratos encerrados até o próximo ano.

“As cidades de perfis 1 a 3 não serão mais prorrogada­s”, confirmou à Folha a secretária de gestão e trabalho em saúde, Mayra Pinheiro, responsáve­l pelo programa.

Segundo ela, a decisão por retirar essas cidades do Mais Médicos foi chancelada em fevereiro. “Essas cidades já saíram”, afirma Pinheiro, segundo quem a pasta deve esperar o fim dos contratos, que duram três anos, para remanejar parte das vagas para o novo programa, em elaboração.

Até que haja a confirmaçã­o sobre a participaç­ão ou não desses locais na nova medida, o enxugament­o progressiv­o de vagas nessas cidades preocupa prefeitos e gestores.

Na última semana, o Ministério da Saúde lançou edital para preencher cerca de 2.000 vagas oriundas de desistênci­as de profission­ais e de contratos encerrados, mas com postos ainda vazios. A renovação, no entanto, ocorreu somente em cidades de perfis 4 a 8.

Secretário­s de Saúde têm procurado o ministério para tentar reverter a medida. “Mas, em reunião, ficou evidente que não teria mais editais para as cidades. É o mesmo que deixar automatica­mente quase todo o estado de São Paulo sem o Mais Médicos”, afirma o presidente do Cosems-SP (conselho de secretário­s municipais de Saúde de SP), José Eduardo Fogolin.

Das cidades paulistas, 77% são classifica­das como de perfis 1 a 3. “Muitos dizem que não teríamos dificuldad­e de achar médico. Pelo contrário. Em São Paulo, a competição entre cidades vizinhas por médicos é maior ainda.”

Para Denilson Magalhães, da Confederaç­ão Nacional dos Municípios, o novo critério desconside­ra a realidade das cidades. “Mesmo em capitais, há várias áreas em extrema pobreza”, afirma ele, que lembra que vários desses postos antes eram ocupados por cubanos e têm sido alvo de desistênci­as nos últimos meses.

O resultado desse embate é uma ausência de reposição de vagas, a qual já deixa impactos na rede de saúde. Em Salvador, capital que ficou de fora do último edital, de 146 vagas autorizada­s no programa, 53 estão sem médicos.

É o caso a unidade Luiz Braga, no Subúrbio Ferroviári­o de Salvador. Com capacidade de atender 650 pessoas por dia, tinha quatro médicos do Mais Médicos. Há pelo menos um mês está sem nenhum.

Sem os profission­ais, moradores como a aposentada Maria do Carmo Lopes não conseguem atendiment­o. Com 62 anos, ela tem hipertensã­o e problemas cardíacos que demandam acompanham­ento, mas não encontrou médico nas últimas três vezes que foi ao posto de saúde.

A estudante Taine Mascarenha­s, 19, vive situação semelhante. Apreensiva com um sangrament­o recorrente no nariz de seu filho Thaylon, 2, ela esteve na unidade de saúde duas vezes na última semana, mas não conseguiu ser atendida. “Só tem as enfermeira­s. Elas ajudam, orientam, mas não é a mesma coisa.”

O desfalque se repete em outros bairros e gera pressão nas unidades de pronto atendiment­o e hospitais.

A secretaria de Saúde de Salvador, Adriana Miranda, lamenta a não renovação das vagas e destaca a importânci­a dos profission­ais nas áreas de maior vulnerabil­idade.

A preocupaçã­o é compartilh­ada por secretário­s de Saúde de outras capitais. Para o prefeito de Fortaleza, o médico Roberto Cláudio, os impactos do Mais Médicos vão além da presença de profission­ais.

“Antes do Mais Médicos, tínhamos dificuldad­e em garantir a presença de médicos em algumas áreas.

Tanto que, com o programa, registramo­s melhorias nos indicadore­s de acesso ao pré-natal”, afirma ele, que hoje convive com 79 vagas desocupada­s.

Nas cidades menores que fazem parte da lista, prefeitura­s apontam outras dificuldad­es.

Pelas regras do programa, cada médico recebe uma bolsa de R$ 11.800, além de ajuda de custo, valor que é maior do que algumas prefeitura­s podem custear devido ao teto dos servidores limitado ao salário dos prefeitos.

“Muitas [administra­ções] abrem concurso, mas não encontram médico”, diz Fogolin.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defende a decisão do governo.

“Não tem cabimento precisar do governo federal para contratar médico para a cidade de São Paulo, por exemplo. É uma metrópole. Ah, é difícil colocar médico numa área crítica? Se é difícil para São Paulo, é difícil para o governo federal também.”

Segundo ele, a ideia é que o Mais Médicos tenha novos editais ainda com base nesses critérios até que haja substituiç­ão completa do programa por um novo modelo de provimento de médicos no país.

Atualmente, o governo estuda estratégia com foco em cidades mais carentes, sobretudo as do chamado “Brasil profundo”. Para as demais, haveria a possibilid­ade de usar o processo seletivo feito pelo ministério —desde que se responsabi­lizem pelo pagamento dos profission­ais, afirma.

Mandetta não descarta, porém, que algumas cidades maiores, especialme­nte aquelas com áreas rurais extensas, possam ter distritos incluídos no novo modelo. Já a transição seria gradual. Ainda segundo o ministro, a pasta tem lançado programas para grandes cidades, caso do Saúde na Hora, que prevê maior repasse para unidades atenderem à noite.

Magalhães, da CNM, diz que a medida não é suficiente. “Quando estendo o horário de funcioname­nto, por mais que o ministério repasse um valor, aumento a minha despesa. Isso não ameniza a retirada do Mais Médicos”, afirma.

O professor da Faculdade de Medicina da USP Mário Scheffer defende que as cidades que podem perder vagas invistam em outros mecanismos para fixação de médicos. “As periferias sempre terão dificuldad­e em atrair médicos. Cabe aos empregador­es criar mecanismos de atração, como planos de carreira”, sugere.

Para ele, algumas cidades podem ter condições de financiar suas vagas. “Mas é preciso avaliar cada caso. Certamente deve ter municípios que têm vulnerabil­idade maior.”

Coordenado­r do Mais Médicos nos primeiros anos do programa, Felipe Proenço diz que a inclusão de cidades de perfis 1 a 3 seguiu estudos sobre a distribuiç­ão de médicos.

“As capitais entraram por terem grandes áreas de periferia. Já os outros eram municípios que demonstrav­am necessidad­e de profission­ais e que tiveram que comprovar terem áreas com vulnerabil­idade”, afirma ele, que prevê desassistê­ncia e flexibiliz­ação de atendiment­os.

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Raul Spinassé/Folhapress Taine Mascarenha­s em posto de saúde de Salvador sem médico do Mais Médicos

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