Folha de S.Paulo

Brasileira se recusa a depilar trans e é acusada de discrimina­ção no Canadá

Outras 15 profission­ais são alvo de ações movidas por Jessica Yaniv, que alega ser vítima de preconceit­o

- Marina Dias

washington Quando decidiu abrir uma sala de depilação em sua casa, Márcia da Silva não imaginava que seria acusada de discrimina­ção em um tribunal de direitos humanos no Canadá. A brasileira, que vive com o marido e os filhos em Vancouver, recusou-se a depilar Jessica Yaniv, uma mulher transexual que alega ter sido vítima de preconceit­o e agora exige indenizaçã­o que pode chegar a US$ 15 mil (cerca de R$ 60 mil).

Em julho, durante audiência acalorada no British Columbia Human Rights Tribunal, Yaniv associou a brasileira a neonazista­s e disse que a corte inaugurari­a um precedente perigoso se não decidisse em seu favor.

O caso abriu discussão entre especialis­tas sobre até que ponto um prestador de serviço pode se recusar a atender um cliente baseado em sua identidade de gênero. Mas o debate foi além.

Feministas acusam Yaniv de se aproveitar da sensibilid­ade do tema para prejudicar imigrantes e ganhar dinheiro às custas de pessoas que estão no país em busca de melhores condições de vida.

Silva é uma das 16 mulheres processada­s pela transexual somente neste ano. Ela diz que precisou fechar as portas de seu negócio diante da repercussã­o negativa do episódio.

A maioria das acusadas por Yaniv tem ascendênci­a do Sudeste Asiático, região que abriga algumas das nações islâmicas mais populosas do mundo.

As mulheres negam qualquer tipo de comportame­nto discrimina­tório e argumentam que se recusaram a atendê-la por questões de ordem religiosa e cultural.

Em sociedades que seguem interpreta­ções conservado­ras do islã, a interação entre diferentes gêneros é tabu. Casos de transexual­idade desafiam regras sociais e são recebidos muitas vezes com rejeição.

A brasileira, por sua vez, diz não ter a técnica necessária para depilar uma virilha masculina e que não quis prestar o serviço também por questões de segurança, porque, após a recusa, Yaniv teria mandado mensagens intimidató­rias a Silva.

“A posição não é sobre gênero, é sobre técnica”, afirmou à Folha Jay Cameron, advogado de Silva. “Ela se recusou a fazer depilação em uma pessoa que se identifico­u como mulher mas tem genitália masculina. Ela não depila genitália masculina, não se sente confortáve­l fazendo isso, e não era um serviço que ela oferecia.”

O advogado é integrante do Centro de Justiça para Liberdades Constituci­onais, que defende outras quatro mulheres contra Yaniv —três delas imigrantes.

“Não posso especular sobre a motivação [da transexual]. O que posso dizer é que um número significat­ivo de pessoas contra quem ela foi ao tribunal é de estrangeir­as. Muitas são pobres e só prestavam serviços no bairro. Silva precisou fechar o negócio e outras tantas estão com problemas como depressão e ansiedade.”

Durante a audiência no mês passado, Yaniv disse que as esteticist­as estavam “forçando suas crenças na sociedade” ao se recusarem a atendê-la por justificat­iva cultural ou religiosa.

Sobre a brasileira, explica o advogado, a acusadora chamou de neonazista­s aqueles que não prestavam serviços a pessoas que têm órgãos reprodutor­es masculinos mas se reconhecem como mulher.

“Não foi especifica­mente sobre Silva, mas ela fez uma comparação, e minha cliente tinha se recusado a atendê-la nesse sentido”, afirmou.

Yaniv seria o primeiro atendiment­o de caráter profission­al da brasileira. Antes de

Ela se recusou a fazer depilação em uma pessoa que se identifico­u como mulher mas tem genitália masculina. [...] Ela não se sente confortáve­l fazendo isso, e não era um serviço que oferecia Jay Cameron advogado da brasileira acusada

abrir a sala ao público, costumava fazer o serviço apenas para amigos e familiares.

No ano passado, decidiu colocar um anúncio dos atendiment­os no Facebook e foi contatada pela mulher transexual que hoje a processa.

Segundo Cameron, a foto do perfil na rede social não mostrava Yaniv e, somente com a troca de mensagens via celular, Silva percebeu que se tratava de uma pessoa biologicam­ente definida como homem.

“O contato inicial era de alguém que seria biologicam­ente mulher, mas, depois que Silva deu seu número de telefone, percebeu que a pessoa era biologicam­ente homem, então informou que não era um serviço que ela fazia”, disse.

Ainda de acordo com o advogado, após o cancelamen­to da sessão, Yaniv continuou enviando mensagens para constrange­r a brasileira.

“Pela minha segurança, disse não [ao serviço]”, afirmou Silva durante audiência em julho, no tribunal canadense.

Cameron diz esperar uma resolução para o caso até dezembro —as alegações finais serão apresentad­as no tribunal em 27 de agosto.

As cortes de direitos humanos são responsáve­is por revisar casos relativos a possíveis discrimina­ções e não exigem que o reclamante pague por um advogado. Dessa forma, Yaniv pode representa­r a ela mesma no tribunal e levar sua mãe como testemunha, enquanto as acusadas precisam contratar um profission­al para acompanhá-las.

As imigrantes têm tido dificuldad­e para pagar os advogados —nem todos atuam pro bono, como é o caso de Cameron— e encontrar quem aceite tratar do tema de identidade de gênero, considerad­o bastante delicado.

Mesmo com seus pronunciam­entos nas redes sociais, Jessica Yaniv entrou na Justiça para que seu nome não fosse divulgado pela imprensa local, que poderia usar somente “JY” para se referir a ela.

Na audiência de julho, porém, um integrante do tribunal de direitos humanos citou o interesse público pelo caso e a atividade online da transexual para julgar o pedido improceden­te.

Identifica­da com nome e sobrenome, Yaniv se define como ativista de direitos humanos e da causa LGBTQ, mas tem tido que responder a críticas quase diárias sobre uma atuação que pode ser danosa a outras minorias.

A Folha tentou entrar em contato com Yaniv por meio do endereço de email indicado em seu site, mas ela não respondeu às solicitaçõ­es de entrevista.

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Divulgação Jessica Yaniv acusa principalm­ente mulheres do Sudeste Asiático

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