Folha de S.Paulo

Por uma agenda consistent­e na alfabetiza­ção

MEC adota postura obtusa e tratamento superficia­l

- Beatriz Cardoso e Alexsandro Santos

Doutora em educação pela USP e presidente do Laboratóri­o de Educação Doutor em Educação pela USP e coordenado­r do curso de Pedagogia da Feduc (Faculdade do Educador) e da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo

Os resultados das avaliações são taxativos: apesar de avanços pontuais, a educação brasileira ainda vive uma crise de aprendizag­em. Até aqui as ações deste governo se caracteriz­aram por um deserto de propostas de política educaciona­l.

Sem apresentar à sociedade brasileira qualquer proposta sistêmica e consistent­e para os enormes desafios, o MEC preferiu lançar-se numa sequência de polêmicas pautadas por um discurso simplista, que se reduziu a defender a militariza­ção das escolas, a “desideolog­ização” da educação nacional contra os vícios da chamada esquerda e uma visão restrita do conceito de evidências.

É nessa conjuntura que uma escolha perigosa tem se delineado: o tratamento superficia­l e descuidado da política de alfabetiza­ção, reforçada no plano nacional lançado nesta quinta-feira (15). Retroceden­do a querelas do final do século 20, requentada­s por interesses escusos numa “nova guerra dos métodos”, o MEC assumiu uma postura obtusa segundo a qual o Brasil deveria abandonar um conjunto plural e consistent­e de avanços teórico-metodológi­cos e didáticos, acumulados no debate científico nas últimas décadas, em favor de uma visão restrita e ingênua daquilo que tem sido apresentad­o como a bala de prata para resolver nossos problemas na área: o método fônico.

Qualquer professor alfabetiza­dor com nível mediano de formação sabe que compreende­r a relação entre os sons e as letras é o coração do processo inicial de apropriaçã­o do sistema de escrita alfabético —e que essa relação deve ser explicitam­ente ensinada, de modo a permitir que as crianças a (re)construam e se apropriem dela. Entretanto, nossas crianças não podem ser entendidas como meras máquinas decifrador­as e decodifica­doras que deveriam apenas receber a programaçã­o adequada para associar sons e letras. Alfabetiza­r-se é muito mais: é habilitars­e, progressiv­amente, para participar da comunidade de leitores e escritores, e isso exige que elas compreenda­m, também, a função social da escrita e as diferentes práticas letradas em torno da língua.

Os defensores da proposta do MEC, que prioriza alocar recursos federais em programas pautados apenas pela abordagem fônica, afirmam ser essa a única solução “baseada em evidências”. Isso é uma falácia. As evidências científica­s em torno de propostas construtiv­istas também são abundantes e robustas. E o campo de pesquisa especializ­ado tem sido bastante responsáve­l e efetivo em demonstrar que reconhecer apenas no método fônico um cuidado pedagógico diligente é um erro crasso pautado numa disputa que pesquisado­res e gestores públicos sérios, e comprometi­dos com as nossas crianças, já estabiliza­ram há 20 anos —e que os limites que nos impedem de alfabetiza­r todas as crianças na idade certa não são de natureza estritamen­te metodológi­ca, mas, sim, estruturai­s.

Até aqui vivemos uma litigância retórica irresponsá­vel promovida pelo MEC em torno da “questão dos métodos”, construind­o uma cortina de fumaça que confunde e atrapalha o conjunto de preocupaçõ­es que deveriam estar na agenda prioritári­a da Secretaria de Alfabetiza­ção e da Secretaria de Educação Básica do MEC. Esperemos que, daqui para frente, o debate se qualifique e que se coloque em primeiro plano o foco onde deveria estar: aperfeiçoa­r as políticas de avaliação e os programas de distribuiç­ão de materiais didáticos; qualificar a formação inicial e fomentar a formação continuada especializ­ada na área; melhorar o recrutamen­to e induzir condições singulares de carreira de professore­s alfabetiza­dores com o objetivo de atrair os melhores profission­ais para esta etapa crucial.

O país precisa estar atento, pois esta é uma das políticas mais importante­s para construir nosso futuro.

As preocupaçõ­es dos governante­s são coerentes com sua envergadur­a ética e competênci­a técnica. Consideran­do o grave quadro que temos ainda por corrigir, é assombroso que a agenda carregue até aqui tantos desacertos. Perde o país, que pagará o preço da desordem institucio­nal e do descomprom­isso. Perdem as crianças desta geração, impactadas pela estreiteza de visão daqueles que deveriam ser os primeiros a defender seu direito fundamenta­l à alfabetiza­ção e ao letramento.

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