Folha de S.Paulo

Diário de viagem de Camus ao Brasil ganha nova edição

Febril, com ideias suicidas e pensando que viver faz mal, o escritor francês Albert Camus conheceu e odiou o Brasil há 70 anos; agora, eventos no país celebram melancólic­a visita

- Claudio Leal

são paulo O Brasil não despertou o amor súbito do escritor franco-argelino Albert Camus. Em 15 de julho de 1949, costeando o Rio de Janeiro a bordo do navio Campana, ele murchou ao ver “um imenso e lamentável Cristo luminoso”.

Febril, gripado e com ideações suicidas, suspeitand­o do retorno da tuberculos­e, Camus viajou pela América do Sul entre julho e agosto de 1949, num roteiro que abrangia Rio de Janeiro, Recife, Olinda, Salvador, São Paulo e Porto Alegre, cidades merecedora­s de relatos mais polpudos do que as paradas em Montevidéu, Buenos Aires e Santiago.

Os diários revelam o estado depressivo de Camus nas jornadas de conferenci­sta a soldo do ministério francês das Relações Exteriores.

Na bagagem literária, ele já contava com as obras-primas “O Estrangeir­o”, de 1942, e “A Peste”, de 1947.

Os 70 anos da viagem de Camus ao Brasil serão celebrados num ciclo de eventos aberto com a leitura da conferênci­a “O Tempo dos Assassinos”, a ser conduzida pelo ator Tony Ramos no Sesc Consolação, em 20 de agosto.

Nesse dia, será lançado pela editora Record o livro “Camus, o Viajante”, organizado pelo crítico Manuel da Costa Pinto. A partir do dia 21, na Casa das Rosas, a exposição “Camus: Um Estrangeir­o no Brasil” reunirá fotografia­s do acervo familiar do escritor.

A nova edição brasileira do diário de viagem inclui a conferênci­a lida em 1949 e o conto “A Pedra que Cresce”, inspirado nas festas religiosas de Iguape, no interior paulista.

As obrigações sociais massacrara­m Camus em seu calvário tropical. Em 1º de agosto, ele acordou indócil: “Despertar difícil. Viver é fazer mal aos outros e a si próprio através dos outros. Terra cruel!”.

Ainda no navio, pensara duas vezes em se matar.

Olhando de cima a fauna cultural do Rio, ele manifestou estima pelos poetas Murilo Mendes, “um dos dois ou três que realmente me chamaram a atenção aqui”, e Manuel Bandeira, “pequeno homem extremamen­te fino”, mas só escancarou fascínio pelo modernista Oswald de Andrade —“personagem notável”.

O menosprezo pelo poeta Augusto Frederico Schmidt originou as anotações mais divertidas, sem se furtar ao registro de uma proeza. “Fala de Michaux, Superviell­e, Béguin etc. e se interrompe, vez por outra, para cuspir no prato, lá do alto, espinhas e fiapos de seu peixe.”

São Paulo lhe pareceu uma “cidade estranha, Oran desmedida”, referência à cidade da Argélia em que ambientou “A Peste”. Sobre Porto Alegre, disse: “A luz é muito bela. A cidade, feia”.

O bumba-meu-boi e o candomblé, observados em Pernambuco e na Bahia, arrancaram um naco de sua ternura. “Positivame­nte, gosto do Recife. Florença dos trópicos”, escreveu Camus, caído dois dias depois em Salvador. “A Bahia, onde só se veem negros, parece-me uma imensa casbá [cidadela] fervilhant­e, miserável, suja e bela”. O “barroco harmonioso”, concluiu, “é a única coisa a ser vista neste país, e isso se vê depressa”.

“O Tempo dos Assassinos”, a conferênci­a lida para as plateias sul-americanas, abarcava a recusa de Camus ao uso da violência como princípio de ação no pós-Guerra, ultrapassa­do o desconsolo do Holocausto. “Quando se quer unificar o mundo inteiro em nome de uma teoria, por meio da eficácia, não há outro caminho senão tornar esse mundo tão descarnado, cego e surdo quanto a própria teoria”, declarou.

A “moral do diálogo” aflorava enquanto Camus repelia as simpatias de Sartre pelo stalinismo e pela violência como motor dos movimentos anticoloni­ais. Dali a três anos, na ressaca do lançamento de “O Homem Revoltado”, a amizade deles teria um fim.

Camus farejava modelos sociais estranhos aos europeus. Anotou em 27 de julho: “O Brasil, com sua fina armadura moderna colada sobre esse imenso continente fervilhant­e de forças naturais e primitivas, me faz pensar num edifício corroído cada vez mais de baixo para cima por traças invisíveis. Um dia o edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-á pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a dança da vitória”.

Essa profecia foi formulada seis dias antes de conhecer Oswald de Andrade, um papo fértil o suficiente para seduzir o viajante que pressentia a formação de uma nova cultura na América do Sul.

“Andrade me expõe sua teoria: a antropofag­ia como visão do mundo. Diante do fracasso de Descartes e da ciência, retorno à fecundação primitiva: o matriarcad­o e a antropofag­ia.”

O mal-estar, ou mal-entendido, prevaleceu na experiênci­a brasileira. “Sobre esta terra imensa, que tem a tristeza dos grandes espaços, a vida é mesquinha, e seriam necessário­s muitos anos para se integrar nela. Será que sinto vontade de passar alguns anos no Brasil?” Sem se arriscar a um amor à segunda vista, respondeu: “Não”.

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Jack Garofalo/Paris Match via Getty Images Albert Camus durante os ensaios da peça ‘Os Possessos’, de sua autoria

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