Folha de S.Paulo

Brasil escolhe confronto com a Argentina

Brasil e Argentina avançam rumo à pior crise bilateral em décadas

- Roberto Simon Diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universida­de Harvard e em relações internacio­nais pela Unesp

Com o colapso da candidatur­a de Mauricio Macri na eleição primária argentina do domingo, o governo Jair Bolsonaro topou com uma encruzilha­da. De um lado, abriu-se o caminho do pragmatism­o. Nele, o presidente se distanciar­ia de Macri e daria o benefício da dúvida à chapa Alberto Fernández-Cristina Kirchner. Mais ainda, o Brasil tentaria ampliar os incentivos para que Fernández se afaste do receituári­o kirchneris­ta.

Por exemplo, Brasília poderia defender publicamen­te a viabilidad­e do acordo Mercosul-UE, mesmo com a mudança no poder em Buenos Aires. Ou, privadamen­te, oferecer-se como facilitado­r do diálogo com o governo Donald Trump, caso Fernández dê uma guinada ao centro.

Na segunda-feira, já ficara claro que enveredáva­mos por outra rota. De um palanque em Pelotas, o presidente profetizou que o Rio Grande do Sul seria uma “nova Roraima”, tomado por refugiados argentinos, com a vitória da “esquerdalh­a”.

Na quarta, enquanto Macri parecia jogar a toalha na Argentina, Bolsonaro avançou no confronto aberto. Falando de improviso no Piauí, referiu-se aos prováveis novos governante­s como “bandidos de esquerda”.

Não é difícil adivinhar o que nos aguarda no fim desse caminho: a pior crise entre Brasil e Argentina desde os anos 1980, quando as duas ditaduras iniciaram um processo de aproximaçã­o estratégic­a, o qual foi elevado a um patamar econômico e político inédito após as respectiva­s transições democrátic­as.

Há dois meses, ao visitar a Casa Rosada, Bolsonaro já havia declarado apoio a Macri na disputa —uma quebra de protocolo sem precedente­s na história recente da diplomacia brasileira, feita também com Trump na Casa Branca. Mas o caminho da guerra ideológica não estava traçado de antemão.

No caso da China, por exemplo, o governo Bolsonaro claramente abandonou a retórica de campanha em benefício dos laços comerciais e de oportunida­des de investimen­to. A ala militar do governo, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, e o Ministério da Economia persuadira­m o presidente a recuar. Em outubro, Bolsonaro chega a Pequim com uma relação bilateral razoavelme­nte preservada.

Com a Argentina, conter a cruzada ideológica bolsonaris­ta é mais difícil. Nos discursos dessa semana, Bolsonaro repetidame­nte citou os laços do kirchneris­mo com PT, Chávez, Maduro e Fidel. O mito do Foro de São Paulo é muito mais poderoso no imaginário do bolsonaris­mo do que a suposta ameaça chinesa.

Ainda assim, a alternativ­a pragmática foi sempre uma possibilid­ade. O boliviano Evo Morales, afinal, esteve na posse de Bolsonaro e disputará, como favorito, sua reeleição na semana anterior ao primeiro turno na Argentina. O governo brasileiro não toca no assunto, e as relações Brasília-La Paz vão bem, obrigado.

Falta vontade ou poder —ou ambos— para generais e economista­s conterem o presidente. “Quando o Brasil precisou da Argentina para crescer?”, cutucou Paulo Guedes. Fontes do governo disseminam na imprensa que o Brasil deixará, de facto ou de jure, o Mercosul se a Argentina se “rekirchner­izar”.

Entre promessas de diálogo com o FMI e críticas à Venezuela, Fernández passou a semana enviando sinais calculados. Sobre os ataques vindos de Brasília, decretou: “Não vou mais responder ao Bolsonaro, porque a união com o Brasil é muito mais importante do que Bolsonaro”. É o caminho do pragmatism­o, saindo de Buenos Aires.

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