Folha de S.Paulo

Bolsonaro intervém na PF e abre crise dentro do governo

Troca de chefe do órgão no Rio gera atrito; ‘quem manda sou eu’, afirma presidente

- Camila Mattoso, Igor Gielow e Talita Fernandes Colaborou Italo Nogueira, de Resende (RJ)

A interferên­cia de Jair Bolsonaro (PSL) na chefia da PF no Rio causou perplexida­de dentro do órgão e deu início a uma espécie de queda de braço entre o Palácio do Planalto, a corporação e o ministro Sergio Moro (Justiça).

Bolsonaro anunciou a saída de Ricardo Saadi, que já deixaria o cargo por vontade própria, contestou o substituto escolhido pela direçãoger­al e deu como certa a nomeação de Alexandre Silva Saraiva, a quem conhece.

A investigaç­ão de suposto elo entre milícias e a família do presidente, o chamado caso Queiroz, foi decisiva na troca de Saadi, embora ele não tivesse ingerência na apuração. “Quem manda sou eu”, afirmou Bolsonaro.

Caberá a Moro, a quem a PF está subordinad­a, arbitrar o conflito, crucial para o futuro do órgão.

Os gestos de interferên­cia do presidente Jair Bolsonaro (PSL) na chefia da Polícia Federal no Rio abriram uma crise e deram início a uma espécie de queda de braço entre o Palácio do Planalto, o órgão e o ministro Sergio Moro (Justiça).

Desde a manhã de quintafeir­a (15), o presidente tem dado sinais de intervençã­o na PF, o que causou perplexida­de e desconfort­o à corporação.

Em pouco mais de 24 horas, Bolsonaro anunciou a saída do superinten­dente do Rio, Ricardo Saadi, que deixaria o cargo por vontade própria nas próximas semanas, contestou o novo nome, de Carlos Henrique Oliveira, que já estava escolhido pela direção-geral, e praticamen­te deu como certa a nomeação para o posto de um delegado com quem tem contato desde que foi eleito —Alexandre Silva Saraiva.

“Quem manda sou eu, vou deixar bem claro. Eu dou liberdade para os ministros todos, mas quem manda sou eu”, afirmou o presidente nesta sexta-feira (16).

“Quando vão nomear alguém, falam comigo. Eu tenho poder de veto, ou vou ser um presidente banana agora?”, disse.

As manifestaç­ões mostraram, na avaliação da cúpula e de dirigentes experiente­s da PF, uma interferên­cia que há muito tempo não ocorria.

O discurso que tem sido usado internamen­te é que será inaceitáve­l se não houver a nomeação de Carlos Henrique Oliveira, o escolhido da direção-geral da PF, para o comando da superinten­dência no Rio.

Dirigentes da polícia avaliam que Moro precisará arbitrar o conflito, determinan­te para o futuro da polícia.

A PF é subordinad­a ao ministro da Justiça, enfraqueci­do em meio à divulgação de mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil que mostram sua atuação em parceria com os procurador­es em diferentes processos da Lava Jato e que colocaram em xeque sua atuação como juiz federal.

Moro também tem sofrido seguidas derrotas no Congresso, onde tramita seu pacote anticrime.

O ministro não comentou a crise com a ingerência na PF —calou-se quinta e sexta, publicando mensagens no Twitter sem relação com o tema. Além disso, segundo as agendas oficiais de Moro e de Bolsonaro, eles não se encontrara­m.

Há cerca de duas semanas, ambos se encontrara­m para uma conversa no Palácio da Alvorada. Segundo relatos de conhecidos de ambos, a reunião acabou aos gritos, com Moro deixando a residência oficial do presidente.

A PF, em nota, rebateu na quinta as declaraçõe­s de Bolsonaro e negou que a troca de comando no Rio fosse por problemas da chefia, mas sim por “desejo manifestad­o, pelo próprio policial, de vir trabalhar em Brasília”. O presidente havia citado questões de “gestão e produtivid­ade”.

A PF do Rio passa por momento delicado, especialme­nte após o caso Fabrício Queiroz, PM aposentado e ex-assessor de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Ele é pivô da investigaç­ão do Ministério Público do Rio que atingiu o senador

Jair Bolsonaro em declaração nesta sexta (16)

e primogênit­o do presidente.

A apuração começou após um relatório do governo federal ter apontado a movimentaç­ão suspeita de R$ 1,2 milhão na conta do ex-assessor do filho do presidente na Assembleia Legislativ­a do Rio, de janeiro de 2016 a janeiro de 2017.

Esse caso especifica­mente não está com a PF, mas há investigaç­ões que podem envolver os mesmos personagen­s.

Por exemplo, a apuração sobre a natureza de supostos elos entre milícias do Rio e a família de Bolsonaro, por meio do caso Queiroz, que teve papel de destaque na demissão de Saadi.

Bolsonaro vinha se queixando a interlocut­ores havia meses de que não confiava na atuação dele, que não tinha ingerência sobre nenhuma investigaç­ão envolvendo o clã Bolsonaro, mas que agia em sintonia com quem lida com o assunto.

A Folha ouviu de um governista que o presidente considera o tratamento dado às investigaç­ões envolvendo seu filho Flávio direcionad­o para atingir sua imagem.

Se a escolha do ocupante do cargo de diretor-geral da PF é do presidente da República (considerad­a, portanto, política), as escolhas de cargos internos são da própria direção do órgão. A liberdade interna para nomeações e trocas é tida como um princípio para blindar a polícia de pressões externas em sua atuação e nos trabalhos de investigaç­ão.

À noite, em agenda em Resende (RJ), Bolsonaro disse que o caso “está nas mãos do Moro”. “Ou vai ser o superinten­dente de Manaus ou o de Pernambuco. Eu troco ministro e não dá [polêmica], porque trocar superinten­dente vai dar?”, disse.

Nome do presidente para a chefia do Rio, Saraiva está na Superinten­dência da PF no Amazonas desde 2017, escolhido pelo então diretor-geral Leandro Daiello — que deixou o cargo no fim daquele ano, sendo substituíd­o por Fernando Segovia.

Quando foi eleito, Bolsonaro teve uma conversa de cerca de três horas com o delegado em sua casa, em sondagem para o cargo de ministro do Meio Ambiente —Ricardo Salles acabou escolhido.

Já Carlos Henrique Oliveira, nome escolhido pela direção-geral, é atualmente superinten­dente de Pernambuco. Ele tomou posse em abril.

A direção da polícia planejava mandá-lo para o Rio em 2020, mas decidiu acelerar o processo quando percebeu que havia movimentaç­ão para substituiç­ão de Saadi, que já manifestav­a o desejo de sair.

Assim, no novo plano, a troca ocorreria em algumas semanas, mas foi antecipada pelo anúncio do presidente.

A situação entrou em banho-maria nesta sexta, com a ameaça de uma renúncia geral de superinten­dentes se Oliveira não for efetivado no Rio. Bolsonaro moderou um pouco seu discurso, dizendo que Saraiva seria uma sugestão, mas o impasse continua.

Em março do ano passado, o assassinat­o da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) levou a uma investigaç­ão da Polícia Civil que acabou sob intervençã­o dos militares que comandavam a segurança no Rio por suspeita de tentar tirar do foco o papel de milicianos na execução dela e de seu motorista, Anderson Gomes.

Por determinaç­ão do Ministério da Segurança Pública e da Procurador­ia-Geral da República, foi criado um grupo na PF para apurar a operação-abafa. O andamento dessa investigaç­ão, sigilosa e ainda em aberto, são um dos grandes mistérios hoje em Brasília. O que se sabe é que há uma montanha de sigilos telefônico­s e fiscais quebrados à disposição dos investigad­ores.

Essa apuração, tocada de Brasília, trabalhou em coordenaçã­o com Saadi e com o Ministério Público do Rio. Enquanto isso, operações no estado jogaram luz sobre ações de milicianos e o gabinete de Flávio Bolsonaro, então deputado estadual (2003-18).

Os Bolsonaro negam quaisquer ligações com milícias, ainda que historicam­ente tenham sido defensores em tribunas do papel delas para conter o tráfico em favelas fluminense­s.

Quem manda sou eu, vou deixar bem claro. Eu dou liberdade para os ministros todos, mas quem manda sou eu

Não é nova a tentação de um presidente da República de interferir nos rumos da Polícia Federal, mas pela primeira vez, é explicitad­a pelo próprio chefe do Executivo. “Quem manda sou eu”, disse Jair Bolsonaro (PSL-RJ) nesta sexta-feira (16).

O paralelo mais recente remonta à ditadura militar (19641985), quando o Exército comandava o Palácio do Planalto e a PF ao mesmo tempo.

Após a redemocrat­ização, a imagem da PF foi melhorando ano após ano, até se consolidar como uma das instituiçõ­es em que os brasileiro­s mais confiam.

Ela também ganhou uma inédita projeção política, a ponto de influir em campanhas eleitorais e derrubar ministros e governador­es.

Naturalmen­te, os presidente­s da República passaram a olhá-la com um misto de respeito e medo, aliado ao interesse por informaçõe­s privilegia­das.

Nos anos 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) manteve reuniões com o então diretor, Vicente Chelotti, atrás de dados sobre o caso Cayman, um papelório falso então sob investigaç­ão, mas era um movimento sigiloso nos bastidores.

Essa relação trouxe depois dores de cabeça para ambos os lados. Mais de 20 anos depois, Chelotti disse, porém, que nunca houve pedido de FHC para tirar ou colocar policiais em cargos de chefia ou direcionar inquéritos.

“As conversas que tive com o presidente como diretor da Polícia Federal foram muito pontuais, ocasionais. Praticamen­te eu não tinha nenhuma relação com FHC. Lembro de uma vez ele me dizer ‘minha polícia’. Eu observei: ‘Presidente, a polícia é da União, não é do senhor’. Ele corrigiu dizendo que foi uma força de expressão”, disse Chelotti.

“Eu não sofri nenhum tipo de interferên­cia nem do Nelson Jobim [então ministro da Justiça] nem do presidente. Zero”, afirmou.

Ele se recorda de que um ministro da Justiça, Íris Rezende (MDB), indicou um nome para a superinten­dência de Goiânia (GO) que, segundo Chelotti, foi recusado.

Em 2002, já na gestão de outro diretor da PF, o delegado Deuler Rocha, também da Superinten­dência do Rio que investigav­a irregulari­dades no leilão das telefônica­s, foi bruscament­e retirado da apuração.

Além disso, a equipe da delegacia foi desmontada, por decisão do então superinten­dente regional, Marcelo Itajiba —que havia sido assessor do ministro José Serra (PSDB) e depois se tornaria deputado federal pelo PSDB.

Na época, as medidas foram anunciadas como “rotina”.

Em 2008, durante o segundo mandato do governo Lula (2003-2010), um telefonema intercepta­do pela PF mostrou o chefe de gabinete pessoal do presidente, Gilberto Carvalho (PT-SP), recebendo um pedido para complicar a vida do delegado Protógenes Queiroz, na época à frente da Operação Satiagraha.

Embora tenham sido noticiados e gerado discussão na época, esses fatos foram menos impactante­s dentro da polícia do que ver um presidente batendo no peito para dizer que manda nela.

Sob Dilma Rousseff (PT), o governo deixou a PF trabalhar na Operação Lava Jato, mas no finalzinho do mandato ela tentou um controle branco por meio da nomeação do ministro da Justiça, o procurador da República Eugênio Aragão.

Porém não se tem notícia de que Aragão tenha praticado algo concreto contra os interesses da Lava Jato ou da PF. O diretor-geral do órgão e eminência parda da Lava Jato, Leandro Daiello, foi inclusive mantido no cargo.

Aragão prometeu agir contra eventuais abusos e excessos da PF, mas ficou apenas dois meses no cargo, até o impeachmen­t de Dilma em 2016.

Nesta semana, contudo, o presidente subiu o tom das declaraçõe­s. Bolsonaro não só antecipou que o superinten­dente do Rio seria trocado por “questões de produtivid­ade” como reafirmou, nesta sexta, que é dele a palavra final sobre a vida da PF.

Bolsonaro arranha a boa imagem da PF ao sugerir que pode manobrar os rumos do órgão. Com isso, acabou colocando em dúvida a isenção de todas as investigaç­ões em andamento na PF, atuais e futuras.

A pergunta que fica é: se ele pode derrubar e colocar superinten­dentes e se “quem manda” é ele, como assegurar que investigaç­ões não sejam dirigidas para atender a vontade do Planalto?

Esse tipo de indagação só surge no Brasil hoje a partir das declaraçõe­s do próprio presidente.

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Bruno Santos/Folhapress Sinagoga Beit Chabad Itaim, no Jardim Europa, em São Paulo; obra identifico­u templos nas cinco regiões da cidade e em municípios da região metropolit­ana
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Pedro Ladeira/Folhapress Jair Bolsonaro durante solenidade do Dia da Juventude, em Brasília

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