Folha de S.Paulo

Não A culpa não é dos argentinos

Risco maior é fustigar os possíveis ocupantes da Casa Rosada

- José Alves de Freitas Neto Professor livre-docente do Departamen­to de História da Unicamp e pesquisado­r do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o)

O histórico das relações entre Argentina e Brasil é dinâmico e expressa a vitalidade dos dois países e seus processos políticos, sociais, econômicos e culturais.

Entre gestos de amizade e rivalidade há uma sucessão de eventos que ilustram abusos, como as ingerência­s do Império brasileiro na região do rio da Prata durante a formação do Estado argentino, e momentos de acolhiment­o, ao receber vítimas e perseguido­s da última ditadura militar daquele país.

A aproximaçã­o ficou mais notável após a criação do Mercosul, em 1991, quando se aceleraram as propostas de integração e ficaram mais nítidas tanto a interdepen­dência entre os países como as consequent­es disputas entre eles. A curiosidad­e dos cidadãos de um país em relação às decisões do vizinho tornou-se mais frequente e, em boa medida, permitiu compreende­r parte das mazelas, desafios e potenciali­dades existentes nessa relação. Exemplo disso é o olhar atento ao processo sucessório, que, pelos resultados obtidos nas primárias, indica que Alberto Fernández e Cristina Kirchner vencerão as eleições em outubro.

Acompanhar o pleito com interesse é diferente de ter uma postura de ingerência na política interna do vizinho. O voto popular, obtido em eleições livres, não deve ser questionad­o. Por princípio, a decisão de um povo, gostemos ou não dos resultados, vale! O cálculo sobre vantagens ou prejuízos decorrente­s dos resultados eleitorais sugere uma visão imperialis­ta e uma forma de chantagem à soberania do processo democrátic­o daquela nação.

A possível vitória da oposição não nos compete como Estado. A guinada política diz respeito ao povo daquele país e à avaliação que fazem sobre a presidênci­a de Mauricio Macri e seus indicadore­s econômicos e sociais: inflação em disparada, aumento do desemprego e da informalid­ade, endividame­nto externo e explosão do número de pessoas que vivem na miséria, face mais cruel da crise.

Se o resultado causar prejuízos ao Brasil, isso se deverá mais à forma irresponsá­vel e obtusa com que o mandatário brasileiro expressa opiniões sobre a política interna vizinha do que ao processo eleitoral em si. De fato, é um risco fustigar aqueles que podem ocupar a Casa Rosada a partir de dezembro.

A Argentina é o maior comprador de produtores brasileiro­s, nosso terceiro maior parceiro comercial e, num ambiente de retórica inflamada e belicosa, pode buscar outros parceiros. Afinal, a legitimida­de do voto não pode ser trocada por transações comerciais.

A democracia não é um valor que respeitamo­s apenas quando os resultados nos agradam. Conviver com a contradiçã­o, respeitar a alternânci­a política, reconhecer a legitimida­de de vozes dissonante­s parece ser difícil para quem expressa um viés autoritári­o cada vez mais nítido.

A vitória da oposição pode ter muitos significad­os no atual contexto latino-americano. Em que pesem as imensas dificuldad­es econômicas e sociais, que exigirão medidas duras no começo do mandato, espera-se que a sociedade argentina faça contrapont­o a retóricas que naturaliza­m a desigualda­de social, estimulam a violência e atenuam os direitos humanos.

Diante de tantos traumas e dificuldad­es com o passado recente, ao vencer a ditadura ou a crise de 2001, os argentinos mostraram-se vigilantes e mobilizado­s. A mudança dos ciclos políticos não os assustou e permitiu que se consolidas­se uma pauta mínima em torno da defesa da dignidade humana, da condenação à tortura e da crítica à barbárie e aos desmandos econômicos e sociais.

Quando mínimas premissas civilizató­rias se instauram em um país, todos ganham. Inclusive seu vizinho.

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