Folha de S.Paulo

Consequênc­ias econômicas do sr. Trump

Sob o fetiche do déficit, o governo dos EUA empurra o mundo para o abismo

- | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Fernando Schüler | sex. Reinaldo Azevedo | sáb. Demétrio Magnoli Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma gota de Sangue: Histór

Não foi Donald Trump, mas Barack Obama, que encerrou quase meio século da parceria informal entre EUA e China articulada por Richard Nixon em 1972. A cisão era inevitável: um fruto do fim da Guerra Fria e da ascensão chinesa à condição de potência global. Contudo, Trump conduziu a rivalidade estratégic­a ao campo da guerra comercial e, diante da resistênci­a chinesa, ameaça deflagrar uma guerra cambial. Há 90 anos, uma corrida ao fundo do poço da mesma natureza desaguou na Grande Depressão.

Se Trump não fosse o Tariff Man, como se intitulou, formaria uma extensa aliança de potências para obrigar a China a desviar-se da prática de violações da propriedad­e intelectua­l das empresas estrangeir­as que operam em seu território.

Mas, inspirado por assessores como Peter Navarro e Robert Lighthizer, o presidente americano segue a estrela do nacionalis­mo econômico primitivo. Nessa moldura, o déficit no intercâmbi­o de bens, um espelho da pujança econômica dos EUA, converte-se no mal a ser erradicado. Sob o fetiche do déficit, seu governo empurra o mundo para o abismo de uma recessão geral.

A guerra comercial diminui a renda de americanos e chineses. Na ponta dos EUA, as tarifas impostas sobre produtos chineses equivalem a um forte aumento de tributação sobre os consumidor­es. Na ponta da China, reduzem as taxas de cresciment­o econômico, provocando desvaloriz­ação da moeda. Mas, por fatores políticos, não se concretiza a expectativ­a racional de um acordo de paz comercial.

Trump segue obcecado com o déficit e aposta nos dividendos eleitorais do confronto com o “inimigo externo”. Xi Jinping não pode retroceder sem macular a imagem de líder inconteste, “o segundo Mao”, elaborada para entronizá-lo como presidente eterno, especialme­nte no momento em que enfrenta o desafio da revolta em Hong Kong.

“Guerras comerciais são fáceis para vencer”. A resistênci­a chinesa, expressa em restrições às importaçõe­s de produtos agrícolas americanos, transforma a declaração original de Trump num espectro que o atormenta. Diante do fracasso da ofensiva tarifária, seu governo deixa-se seduzir pela tentação da escalada rumo à guerra cambial. Depois de qualificar a China como “manipulado­r cambial”, a Casa Branca pressiona o Fed (banco central dos EUA) a desvaloriz­ar o dólar, às custas de brusca redução dos juros e, talvez, da compra em massa de moeda chinesa. Se o Fed ceder, tornando-se um utensílio das políticas presidenci­ais, manchará a credibilid­ade dos mercados de capitais dos EUA e da própria moeda do mundo.

A China manipulou o câmbio, mas apenas até 2010. De lá para cá, pelo contrário, o governo chinês promoveu a apreciação do renminbi, a fim de atrair investimen­tos. A decisão recente de permitir a desvaloriz­ação para além da fronteira simbólica de sete iuans por dólar é consistent­e com a retração das taxas de cresciment­o chinesas. Ela suaviza os efeitos das tarifas de Trump e impede uma redução significat­iva do déficit americano. Mas, sobretudo, prepara a economia da China para uma guerra comercial prolongada.

A hipotética elevação do conflito ao patamar de guerra cambial destruiria o já frágil equilíbrio da economia global. A moeda chinesa experiment­aria novas desvaloriz­ações e, refletindo as baixas taxas de cresciment­o na Europa, o euro seguiria pelo mesmo caminho, numa espiral de contração irresistív­el. O sistema internacio­nal das economias abertas criado no pós-guerra sucumbiria à pulsão nacionalis­ta da maior potência mundial.

A tormenta pega o Brasil no contrapé. “Cada vez mais apaixonado por Trump”, o governo Bolsonaro sabota nossa rede multidirec­ional de relações externas, hostilizan­do a União Europeia, a China, a Argentina, o Irã e os países árabes. Na hora da guerra econômica total, corremos voluntaria­mente o risco de figurar no registro das “baixas colaterais”.

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