Folha de S.Paulo

MP da cabotagem propõe dar sobrevida à indústria naval

Medida incentiva uso de estaleiros brasileiro­s na manutenção de embarcaçõe­s

- Arthur Cagliari

A MP (medida provisória) da cabotagem, a chamada “BR do Mar”, que deve ser enviada ao presidente Jair Bolsonaro no começo de setembro, procura dar sobrevida à indústria naval brasileira, segundo documento que discute as propostas do texto.

O projeto traz a possibilid­ade de as empresas de navegação costeira importarem embarcaçõe­s e abaterem o valor dos tributos da compra na construção, na manutenção e na docagem (reparo do navio).

“Com esse movimento de importação, o governo quer compensar [os estaleiros] com estímulo maior para a manutenção”, disse Pedro Neiva, advogado especializ­ado em infraestru­tura, do escritório Kincaid Mendes Vianna.

A proposta é que os impostos da importação fiquem suspensos por sete anos, ao longo dos quais a empresa pode abater o valor do seu débito com tais reparos e manutençõe­s.

“Você vai fugir da finalidade principal do estaleiro, que é a construção. É algo novo, uma adaptação. É uma solução interessan­te”, diz o advogado.

A indústria naval enfrentou crises nos anos 1950, 1970 e na década de 2010. Esta última eclodiu quando casos de corrupção envolvendo a Petrobras e sócios de estaleiros foram expostos pela Lava Jato.

O governo Lula determinou que a exploração do pré-sal, descoberto em 2006, usasse o máximo de conteúdo nacional. Isso acabou desembocan­do no pagamento de propinas e contratos ineficient­es voltados para a produção de sondas de perfuração e navios para a Petrobras.

À medida que as investigaç­ões avançaram, a maior parte dos pedidos foi suspensa, e os estaleiros paralisara­m a produção, acumulando prejuízos e demitindo trabalhado­res.

Em 2018, reportagem da Folha mostrou o impacto que a paralisaçã­o do estaleiro Enseada Paraguaçu causou em cidades na região do recôncavo baiano. Do início da recessão, entre 2014 e o início de 2016, R$ 96 milhões só em salários deixaram de circular por lá.

Atualmente, segundo o Sinaval (sindicato das empresas do setor), o país tem 24 estaleiros, dos quais 11 estão operando na construção de navios e empregam 17 mil pessoas. Antes da revelação dos casos de corrupção, eram 42 estaleiros e 82 mil trabalhado­res.

Para Sérgio Bacci, vice-presidente do Sinaval, a proposta de utilizar estaleiros para atuar apenas no reparo de embarcaçõe­s não pode ser levada a sério por causa do tamanho da frota. São apenas 20 embarcaçõe­s atuando na costa.

“Se cada navio [dos 20] levar uma semana na docagem, em um ano, um estaleiro atende a todos. E os outros 41 estaleiros? O que eu faço com eles?”

Na avaliação do presidente da Abac (Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem), Cleber Cordeiro Lucas, seria melhor para as empresas locais construir no Brasil porque há o FMM (Fundo de Marinha Mercante) dando condições para produção melhores do que as concedidas em financiame­ntos para importação.

“Temos todos os motivos para querer construir no Brasil. Mas a indústria não é capaz de fornecer em tempo, em prazo e em custo”, diz Lucas.

Nesse sentido, a proposta da MP em integraliz­ar até R$ 1 bilhão do FMM para garantir financiame­ntos para a construçõe­s de navios em estaleiros brasileiro­s também deve dar respiro à indústria nacional.

Além da sobrevida aos estaleiros, a MP também propõe não cobrar ICMS sobre o combustíve­l dos navios, o bunker.

Para isso, a medida provisória quer tratar o bunker como produto de exportação.

Hoje, o preço do bunker ofertado pela Petrobras é igual para navegações de exportação e para cabotagem. Os navios de exportação, porém, não pagam o imposto estadual, enquanto a navegação entre os portos nacionais, sim.

Se buscasse isenção, o governo teria de receber o aval do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária). No formato de produto de exportação, cada estado pode decidir se incide ou não o tributo. leira de Navegação) pode operar com embarcaçõe­s próprias ou com navios estrangeir­os afretados, mas que suspendem sua bandeira.

A suspensão da bandeira faz a embarcação de fora se configurar como um navio do Brasil e, portanto, precisa seguir as regras brasileira­s.

Com a MP, cria-se uma terceira via: navios estrangeir­os podem operar na cabotagem sem suspender a bandeira. Para isso, a EBN teria que criar subsidiári­a no exterior e afretar os navios dessa empresa de fora, preenchend­o dois terços da tripulação com brasileiro­s.

Para Maria Fernanda Hijjar, sócia-executiva do Ilos (Instituto de Logística e Supply Chain), essa mudança é fundamenta­l para que a cabotagem consiga ter mais frequência no atendiment­o aos portos e consiga competir com o transporte rodoviário.

O ponto polêmico da proposta está no fato de que, para reduzir custos, a subsidiári­a se instalaria em um país onde não há muitas exigências para se registrar navios. É a chamada “bandeira de conveniênc­ia”, algo parecido com que empresas fazem em paraísos fiscais, mas no ramo da navegação, comum em países como Libéria e Panamá.

“Com a bandeira de fora, trago para a estrutura da cabotagem parcela de custo de países mais baratos”, disse Batista.

Embora sob primeiro olhar pareça uma medida de simplifica­ção, há uma discussão em torno de questões trabalhist­as que essa medida pode trazer.

“Não é um navio estrangeir­o operando ao redor do mundo. Você tem tripulante brasileiro, trabalhand­o dentro do Brasil, com leis de outro país”, disse Marcus Voloch, diretor para o Mercosul da Aliança Navegação e Logística, empresa especializ­ada no transporte costeiro de cargas.

O próprio TST (Tribunal Superior do Trabalho) não tem um entendimen­to definido sobre qual regra trabalhist­a seguir em trabalhos marítimos.

Em janeiro a 4ª turma da corte afastou a aplicação da lei brasileira no caso da contrataçã­o de um garçom em uma embarcação estrangeir­a, adotando a regra de que o trabalho do tripulante é regido pela lei territoria­l da nacionalid­ade no navio.

Em abril, no entanto, a 6ª turma do tribunal acolheu o recurso de um camareiro para que sua contrataçã­o fosse regida pela legislação brasileira.

O que poderia resolver o impasse seria o reconhecim­ento da convenção 186 da OIT (Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho), destinada a regular os direitos de trabalhado­res marítimos, o que inclui horas de trabalho e descanso, férias, acomodação, alimentaçã­o e proteção à saúde e à segurança. Mas o país não ratificou essa convenção.

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Raul Spinassé - 18.set.18/Folhapress Plataforma no estaleiro Enseada, na Bahia, em crise desde a Operação Lava Jato

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