Folha de S.Paulo

Vitimizaçã­o

Já passou da hora de os estados deixarem de empurrar a responsabi­lidade para a União

- Marcos Mendes Doutor em economia, é autor de “Por Que o Brasil Cresce Pouco?”

Em seu novo livro, “Upheaval”, o historiado­r Jared Diamond mostra as condições necessária­s para que indivíduos e nações superem crises. Ressalta a importânci­a de fazer uma avaliação honesta, ainda que dolorosa, das causas dos próprios problemas. E encarar o desafio de resolvê-los. Negar a responsabi­lidade, culpar terceiros e assumir papel de vítima são a fórmula do fracasso.

Recomendo o livro aos nossos governador­es e deputados estaduais.

Os estados estão em uma crise fiscal e administra­tiva que decorre tanto de decisões equivocada­s de seus próprios gestores, ao longo de vários mandatos, quanto de uma legislação federal que lhes impõe despesas obrigatóri­as.

Virada a página da Previdênci­a, a crise dos estados é o nosso maior problema fiscal e social. Só se resolve a crise com a combinação de gestão responsáve­l e reformas fiscais.

A folha de pagamento estadual pulou de 50% para 63% da receita corrente líquida entre 2008 e 2017. Cresciment­o médio de 4% ao ano acima da inflação.

Estados pobres, com renda per capita abaixo de R$ 1.000, remuneram servidores em mais de R$ 30 mil. Professore­s, policiais e bombeiros se aposentam antes dos 50 anos. E vemos governador­es na TV dizendo que a reforma da Previdênci­a não lhes interessa.

Muitos lutam contra a privatizaç­ão de ineficient­es estatais de saneamento, de energia e bancos. Há os que tentam reverter privatizaç­ões já realizadas. Tribunais e Assembleia­s de estados falidos acumulam incríveis saldos de caixa, apesar de não economizar­em em suas sedes, consumo e salários. A renúncia de receitas do ICMS come parcela elevada da arrecadaçã­o de alguns estados.

E o que se ouve no discurso público? Que a culpa é da União. Na coluna passada, já mostrei que não existe a propalada concentraç­ão de receitas fiscais na União. Mas há mais munição na cartucheir­a da vitimizaçã­o. A preferida de muitos é dizer que a dívida que têm com a União é injusta e cara.

É comum ouvir argumentos do tipo: “A dívida era de R$ 400 bilhões. As parcelas já pagas pelos estados somam R$ 500 bilhões. E os estados ainda devem R$ 500 bilhões”. Espertamen­te ignoram-se os juros devidos. E que o saldo só não caiu mais rápido porque, por demanda estadual, houve limitação no valor das prestações mensais e sucessivos aumentos de prazos. Apesar disso, o passivo estadual com a União caiu de 17,8% do PIB em 2002 para 9,8% em 2018.

A história do endividame­nto dos estados com a União começa nos anos 1980, e o roteiro é de irresponsa­bilidade fiscal estadual, com socorro federal arrancado mediante pressão política. Foram nada menos que dez episódios de renegociaç­ão desde 1987. Todas as renegociaç­ões envolveram ou desconto no valor da dívida ou juros camaradas. Na maior das renegociaç­ões, feita em 1997 (lei 9.496), o desconto concedido no saldo devedor chegou a 20% para alguns estados, com a União assumindo esse custo junto aos credores originais.

Já passou da hora de os representa­ntes estaduais encararem a realidade e deixarem de se vitimizar e empurrar a responsabi­lidade para a União. Alguns poucos já o estão fazendo.

O governo federal também já viveu seu período de vitimizaçã­o e responsabi­lização de terceiros. O auge desse comportame­nto foi a moratória da dívida externa de 1987, que nos conduziu à hiperinfla­ção. Só quando assumimos nossa responsabi­lidade, reformando as instituiçõ­es fiscais e monetárias, conseguimo­s estabiliza­r a economia.

Se não estamos bem, a Argentina é um alerta de que poderíamos estar pior, caso persistíss­emos no autoengano.

Na próxima coluna falarei da obra-prima da vitimizaçã­o: as contas fantasmas da Lei Kandir.

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