Folha de S.Paulo

Risco de legalismo autocrátic­o

É da natureza do direito estabelece­r que nem tudo o que a política ambiciona é válido

- Oscar Vilhena Vieira

Uma das estratégia­s básicas dos novos autocratas, que se espalham ao redor do mundo, é capturar as instituiçõ­es jurídicas e submetê-las aos seus objetivos. Diferentem­ente das ditaduras dos anos 1970 ou das anteriores, constituiç­ões não são mais rasgadas, parlamento­s e tribunais fechados.

Porém, pela substituiç­ão de autoridade­s jurídicas, estrangula­mento de mecanismos de controle e pela edição de decretos e atos administra­tivos de questionáv­el validade, a ordem constituci­onal vai sendo subvertida. O objetivo é desqualifi­car a democracia liberal, a proteção dos direitos de minorias vulnerávei­s e, sobretudo, daqueles que são apontados como inimigos da nação.

É o que se convencion­ou chamar de legalismo autocrátic­o.

No Brasil temos testemunha­do, até o presente momento, um comportame­nto independen­te do Parlamento e dos tribunais, impondo limites a diversas iniciativa­s hostis à democracia e os direitos, como ocorreu na derrubada da medida provisória que permitia o controle governamen­tal sobre as organizaçõ­es da sociedade civil, a transferên­cia da Funai para o Ministério da Agricultur­a ou o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura.

Nas próximas semanas o presidente terá que indicar o novo ou a nova procurador­a-geral da República. Trata-se de uma peça fundamenta­l no sistema de defesa da Constituiç­ão. O presidente já manifestou, em mais de uma ocasião, que procura alguém que não seja identifica­do com as questões indígenas, da defesa do meio ambiente ou o direito das minorias.

Muitos dirão que essa é uma prerrogati­va constituci­onalmente atribuída ao presidente. Ele escolhe quem quiser. As coisas não são tão simples assim. O fato de o presidente ter discricion­ariedade não significa que ele possa fazer qualquer escolha. Sua obrigação é optar por aquela que melhor atenda a função a ser preenchida, não aos seus interesses.

De acordo com a Constituiç­ão, incumbe ao Ministério Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrátic­o e dos interesses sociais e individuai­s indisponív­eis”, o que inclui a proteção dos direitos fundamenta­is das minorias e do meio ambiente, além da obrigação de “defender judicialme­nte os direitos e interesses das populações indígenas” (artigo 127 e 129 da Constituiç­ão Federal). Logo, não se pode escolher alguém contrário às atribuiçõe­s da instituiçã­o que chefiará.

Essa pode parecer uma observação trivial e mesmo pueril, pois o presidente tem todos os incentivos para escolher alguém que não lhe atrapalhe os planos. É da natureza da política. Mas também é da natureza do direito estabelece­r que nem tudo o que a política ambiciona é válido, sob o risco de vermos ameaçadas nossas liberdades.

Ao Senado Federal caberá a responsabi­lidade de apreciar a escolha presidenci­al. Assim como terá que fazê-lo, em breve, em relação a diversas indicações do Executivo, inclusive em relação ao Supremo Tribunal Federal. Trata-se de uma função relevantís­sima, que o Senado não deve negligenci­ar. Embora possa parecer tentador para alguns senadores ter um procurador-geral omisso, isso não é um bom negócio, pois aumentará o custo político do legislador em colocar, diariament­e, limites a um Executivo agressivo aos valores constituci­onais.

Entregar a indicação do procurador-geral para aquele que deverá ser por ele fiscalizad­o, de fato, não foi uma boa decisão da Constituiç­ão de 1988, mas isso é assunto para uma outra coluna. O que importa agora é reduzir os riscos de avanço do legalismo autocrátic­o.

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