Arquiteto escravo tem legado resgatado pela Jornada do Patrimônio, em SP
Quinta e maior edição do evento recupera a memória de Tebas, artista que adornou fachadas de igrejas da capital paulista por dominar técnica
O largo da Misericórdia é hoje um local de passagem no centro de São Paulo. No Brasil colonial, contudo, havia ali um chafariz onde se ia buscar água para as casas e à beira do qual davam-se também encontros e conversas.
Possivelmente, ali se falasse do artesão que lavrara a fonte, um negro que conhecia a arte da cantaria, de apelido Tebas.
Com a canalização da água, no século 19, o chafariz foi transferido para o largo de Santa Cecília, como registra o arquiteto e historiador Carlos Lemos, para servir talvez como bebedouro de cavalos.
Lá ficou até a Primeira Guerra, sendo depois desmontado e esquecido. No largo onde em 1792 ele se ergueu, porém, a partir desta semana se inscreve o nome de Joaquim Pinto de Oliveira Tebas (1721-1811).
É dedicada a ele uma das 25 primeiras placas do projeto Memória Paulistana, iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura que antecede a Jornada do Patrimônio. O evento terá, neste fim de semana, 500 pontos de atividades.
Dentro da programação deste sábado (17), às 15h, Tebas será um dos personagens do Grande Cortejo da Memória Paulistana, no qual atores darão vida a figuras históricas.
A edição deste ano é a maior desde o início do evento, em 2015. Alê Youssef, secretário municipal de Cultura, diz que os percursos permitem a “reconexão da população com a história da cidade”.
Ele também frisa a importância de “ressaltar histórias que ficaram invisibilizadas”, como a de Tebas. No cortejo, que naturalmente passa pelo largo da Misericórdia, Aílton Graça fará o papel do artífice.
O termo, aliás, já não cabe. Em março de 2018, Tebas foi considerado oficialmente arquiteto pelo sindicato estadual da categoria, conta o escritor e jornalista Abílio Ferreira.
Autor do texto da placa no largo da Misericórdia, Ferreira é organizador de “Tebas - Um Negro Arquiteto na São Paulo Escravocrata (Abordagens)”.
O volume, lançado neste ano, traz “uma história feita mais de vestígios do que de confirmações”, diz.
O primeiro senhor de Tebas foi o mestre pedreiro português Bento de Oliveira Lima. Radicado em Santos, esse artesão passou a ser solicitado para trabalhos em São Paulo
Então construída em taipa de pilão, a cidade carecia de quem soubesse trabalhar a pedra, de uso comum na cidade litorânea, para decorar as fachadas de igrejas mais ricas.
Dos quatro artífices em posse de Lima quando de sua morte, em 1769, Tebas era o mais valioso —valia 400 mil réis, ante 100 mil dos demais.
Entre as muitas obras para as quais o mestre passou a ser requisitado, estava a reforma da velha catedral da Sé, que deixou inacabada ao morrer e foi concluída por Tebas.
Para saldar dívidas, a viúva de Lima teve de dispor de bens; interessado em concluir a fachada da Sé, seu arcebispo, Matheus Lourenço de Carvalho, ficou com Tebas. Foi ele quem concedeu-lhe a alforria, entre 1777 e 1778.
Para Abílio Ferreira, o aspecto que sintetiza a importância de Tebas é o fato de que seu trabalho tocou os três vértices da região do centro hoje chamada Triângulo Histórico: as sedes dos beneditinos, dos carmelitas e dos franciscanos.
Documentos registram a contratação de Tebas para lavrar, em 1766, a pedra fundamental da antiga igreja do mosteiro de São Bento; essa pedra teria sido recuperada em 1911, quando da demolição que deu origem à atual sede.
Na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, ainda se podem ver os arcos talhados por Tebas —a igreja, na av. Rangel Pestana, não foi incluída no trajeto de sábado, mas fica bem próxima do início dele.
Tebas terá sua apoteose no largo São Francisco, em frente à Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco, de fachada por ele adornada.
Para o pesquisador, Tebas teve notoriedade ainda em vida, em meio à população escravizada da época. Uma prova disso, diz, seria o apelido.
Tebas, explica, é uma palavra do quimbundo, idioma falado pelos negros bantos, e significa alguém de grande habilidade.