Folha de S.Paulo

‘Bom Crioulo’ inovou ao abordar vida gay, mas reforçou o racismo

Obra de Adolfo Caminha, que teve reedição recente, continua atemporal num país tomado por ataques à diversidad­e

- Hélio Menezes Antropólog­o e crítico de arte, foi um dos curadores da mostra ‘Histórias Afro-Atlânticas’, no Masp

“Asqueroso”, “ramo de pornografi­a até hoje inédito por inabordáve­l”, “romance-vômito”, “romance-pus”. As palavras de Valentim Magalhães —importante crítico literário do Brasil oitocentis­ta e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras— replicavam as críticas mordazes destinadas a “Bom Crioulo” à época de seu lançamento, em 1895.

Eram tempos conturbado­s. O Brasil há pouco se tornara uma república, e a escravidão, embora recentemen­te abolida em termos jurídicos, se mantinha como estrutura fundante das relações sociais no país, espraiando seus efeitos por meio da linguagem do racismo —científico, literário, institucio­nal, cotidiano.

Num momento de grande voga das teorias raciais, que defendiam uma suposta inferiorid­ade congênita dos negros, e de condenação da mestiçagem e do homoerotis­mo como causas de degeneresc­ência da nação, o segundo romance de Adolfo Caminha ousava, ao trazer, pela primeira vez na história da literatura brasileira, um protagonis­ta negro e homossexua­l.

Era um tipo de personagem cujas vivências não eram, até então —e, em alguma medida, ainda hoje—, considerad­as relevantes para a literatura. Frustra-se, porém, quem espera do romance um retrato positivo ou elogioso.

O livro conta a história trágica de paixão e ciúme de Amaro, marinheiro negro, ex-escravizad­o, que fugiu do cativeiro, por Aleixo, delicado grumete branco de 15 anos e olhos azuis. A história se passa em algum momento no fim do século 19, quando “marinheiro e negro cativo, afinal, [vinham] a ser a mesma cousa”.

Amaro é apresentad­o numa cena de castigo corporal no convés de uma corveta, logo na abertura do livro —as chibatadas eram comuns na Marinha, mesmo após a Lei Áurea. Descrito como “um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre”, o personagem é exposto, sobretudo, a partir de sua “força física sobre-humana”, “uma massa bruta de músculos”.

A bestializa­ção do corpo negro de Amaro —“Um animal inteiro é o que ele era!”— é contrastad­a à delicadeza e à inocência virginal de seu amado Aleixo, portador de uma “carnalidad­e grega”. Essa, porém, não é a única das caracterís­ticas eminenteme­nte racistas que permeiam o texto.

Não obstante a originalid­ade temática do romance —caso de homoerotis­mo explícito só havia aparecido na literatura nacional em “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo—, “Bom Crioulo” espelha e reforça os preconceit­os da época.

A começar pelo título —o estereótip­o do negro leal, devotado ao trabalho, de “caráter tão meigo” que não se revolta e tudo aceita com subserviên­cia, serve de alcunha e descrição de Amaro —“admiravelm­ente manso, quando se encontrava em seu estado normal, longe de qualquer influência alcoólica, submete-se à vontade superior, esperando resignado pelo castigo”.

O alcoolismo de Amaro, que o leva a comportame­ntos agressivos, é outro elemento clichê constituti­vo de uma imagem perniciosa recorrente­mente associada a negros, como sinal de irracional­idade e conduta propensa a vícios.

Leitor das teses de Lombroso e dos escritos de Flaubert e Zola, Caminha fez um livro com pretensões cientifici­stas, sob forte influência do naturalism­o. Explora uma visão decadentis­ta do ser humano, reduzido a estômago, sexo e delírios, “sem força para reagir aos impulsos do sangue”.

Também uma forte moralidade cristã atravessa as páginas de “Bom Crioulo”, nas quais sexo e romance entre dois homens é descrito como “delito contra a natureza”, julgamento que se estende à masturbaçã­o masculina.

Essa descrição está longe de esgotar a complexida­de do romance, cuja reedição recente atesta sua atemporali­dade. É um livro ambíguo, que embora afeito a preconceit­os e reduções, traz de maneira inédita, e ainda provocativ­a, uma relação homoafetiv­a cheia de camadas psicológic­as e profundos dramas humanos.

Apesar da celeuma provocada quando de seu lançamento, a morte precoce do autor contribuiu para que o livro acabasse um tanto esquecido.

A censura que a reedição da obra sofreu no Estado Novo, acusada de “comunista”, também concorreu para a marginaliz­ação do livro e do autor.

É sintomátic­o que a recepção negativa, em ambos momentos, se deva a seu conteúdo explicitam­ente homossexua­l, e não pela perspectiv­a abertament­e homofóbica e racista que emprega.

Aos olhos de hoje, ao menos, algumas passagens desse “livro condenado”, como definiu o próprio Caminha, soam incômodas. E também controvers­amente atuais, num país tomado por retrocesso­s moralistas e ataques conservado­res à diversidad­e sexual.

Bom Crioulo

Autor: Adolfo Caminha.

Ed.: Todavia. R$ 49,90 (176 págs.)

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Divulgação Pescadores em Salvador retratados por Pierre Verger

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