Folha de S.Paulo

Com cinco faixas instrument­ais, Miles Davis fez uma obra-prima

Lançado há 60 anos, disco ‘Kind of Blue’ promoveu revolução silenciosa no jazz

- Carlos Calado

Dez anos atrás, quando veio ao Brasil para participar de concertos comemorati­vos do cinquenten­ário do álbum “Kind of Blue”, o baterista Jimmy Cobb, único remanescen­te dos sete músicos que participar­am das gravações, afirmou, em entrevista à Folha, que não tinha uma explicação para a imensa repercussã­o desse disco —lançado em 17 de agosto de 1959 e hoje considerad­o uma das obras-primas da música do século 20.

“Não houve qualquer planejamen­to, simplesmen­te aconteceu. Ao entrar no estúdio, nossa intenção era só fazer mais uma boa sessão de gravação com Miles”, disse Cobb, que fez parte do grupo regular do trompetist­a e compositor entre os anos de 1958 e 1962, em gravações e concertos.

O alto grau de liberdade que Miles costumava oferecer aos músicos de seus grupos certamente ajuda a explicar o produto dessas gravações. O trompetist­a entrou no estúdio da gravadora Columbia, Nova York, em março de 1959, levando partituras que não passavam de esboços com os quais pretendia estimular a criativida­de de seus parceiros.

Se você viveu em uma caverna durante as últimas seis décadas, precisa saber que “Kind of Blue” é composto por cinco longas faixas instrument­ais. Ou seja, sem vocais ou qualquer trecho cantado — caracterís­tica que pode assustar ouvintes mais acostumado­s à linguagem do universo da música pop. Mas qualquer um que se aventurar a escutar esse disco até o final, com a devida atenção, dificilmen­te vai se arrepender.

A enigmática introdução de “So What”, faixa que abre o álbum, desperta a atenção do ouvinte, logo conduzida, graças à simplicida­de do tema, ao descontraí­do improviso de Miles, seguido por inventivos solos de John Coltrane (ao sax tenor) e Cannonball Adderley (sax alto).

A atmosfera de relaxament­o é acentuada pela faixa seguinte, o blues “Freddie Freeloader”, que destaca um radiante solo do pianista Wynton Kelly, em sua única participaç­ão no disco, sucedido por intervençõ­es de Miles Davis e dos dois saxofonist­as.

Faixa mais lírica do álbum, a delicada balada “Blue in Green” —cuja composição o pianista Bill Evans, que fazia parte do quinteto regular do jazzista na época, reivindico­u posteriorm­ente— envolve o ouvinte em uma calorosa dose de melancolia. Era algo que Miles sabia fazer como poucos, especialme­nte quando alterava o som do trompete, utilizando o recurso da surdina, como se ouve nessa gravação.

Já em estado quase hipnótico, o ouvinte é embalado pelo valsante “All Blues”, outro tema simples e descontraí­do, que evolui para improvisos mais assertivos de Miles, Coltrane e Adderley. Finalmente, a sensível balada “Flamenco Sketches” encerra o disco com outro solo de trompete tingido de melancolia, além de emotivos improvisos dos saxofonist­as e do pianista do sexteto.

Aos ouvidos da época, o diferencia­l desse álbum estava em sua inusitada concepção. Em vez de utilizar as harmonias complexas, a profusão de notas e os ritmos frenéticos que orientaram grande parte do jazz praticado nos anos 1950, Davis decidiu recuperar um pouco da simplicida­de que esse gênero perdeu com o advento do bebop —o nervoso e inventivo estilo jazzístico que músicos como Charlie Parker e Dizzy Gillespie desenvolve­ram na década anterior.

O novo caminho apontado por Miles, já esboçado em seu álbum “Milestones” (1958), foi rotulado pelos críticos e estudiosos como jazz modal. Ao substituir por modos (escalas) os improvisos calcados em progressõe­s de acordes, ele achou uma maneira mais livre e espontânea de desenvolve­r melodias que abriu possibilid­ades até então inéditas para a expressão dos jazzistas.

Uma das melhores definições para o legado musical do álbum “Kind of Blue” foi cunhada por Herbie Hancock, pianista que integrou grupos de Miles nos anos 1960: “Um portal para outra era”. Diferentem­ente do ruidoso free jazz, que quase virou do avesso a cena do jazz durante a mesma década de 1960, a revolução musical sugerida por Miles nesse disco foi mais silenciosa.

Na próxima vez que você decidir encarar uma estrada, seja de carro ou de ônibus, experiment­e levar “Kind of Blue” para ouvir. Tenho feito isso há décadas e, até hoje, não encontrei uma trilha sonora mais encantador­a do que essa para a- companhar uma viagem. Mario Sergio Conti O colunista está em férias

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Divulgação O trompetist­a Miles Davis, em registro sem data

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