Folha de S.Paulo

Escritor foi até a Argentina para falar de censura e quis dormir ‘até o fim dos tempos’

- Sylvia Colombo

Albert Camus chegou a Buenos Aires em 12 de agosto de 1949, vindo de barco de Montevidéu —havia passado dois dias na capital uruguaia e estado no Brasil antes disso. Estava determinad­o a duas coisas: conhecer o fervilhant­e círculo literário da cidade e a defender a liberdade de expressão.

Sua anfitriã foi sua amiga e tradutora, a escritora Victoria Ocampo, uma personalid­ade conhecida no meio intelectua­l portenho. Era editora da revista Sur, e sua bela mansão em San Isidro —hoje um museu— servia de ponto de encontro entre nomes famosos da literatura, como Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, que era casado com sua irmã, a também escritora Silvina Ocampo.

Victoria e Camus haviam se conhecido em Nova York, alguns anos antes, e desde então mantinham uma intensa correspond­ência. Victoria também traduziria e editaria textos de Camus na Sur. Entre eles, estavam ensaios, contos e algumas primeiras versões, como “Desterrado­s en la Peste”, uma espécie de rascunho do início de seu “A Peste”.

A primeira obra que havia atraído a atenção de Victoria para o trabalho de Camus foi a peça “Calígula”, de 1938, que lhe pareceu uma metáfora perfeita para governos autoritári­os, como o de Juan Domingo Perón, de quem ela era uma feroz opositora.

Camus desembarco­u decidido a realizar uma conferênci­a sobre liberdade de expressão para os argentinos. A razão disso era que uma obra sua, a peça “Le Malentendu”, havia sido censurada por ser “existencia­lista e ateia” pelo governo de Perón.

Porém, quando o escritor foi avisado de que sua conferênci­a teria de ser lida e aprovada pela censura do regime antes de ser apresentad­a, ele se negou a realizá-la.

Com o evento cancelado, Camus passou os dois dias na chamada Villa Ocampo, onde Victoria havia preparado uma intensa programaçã­o cultural. Houve encontros com nada menos de 40 escritores argentinos, além de leituras de obras e jantares.

O escritor anotou em seu diário sobre esses dias que estava cansado da longa viagem e que na casa da amiga argentina havia encontrado “a paz, ainda que provisória” e que gostaria de dormir ali “até o fim dos tempos”.

Buenos Aires celebra a passagem de Camus por aqui há 70 anos com a semana Um Estrangeir­o em Buenos Aires, com eventos, exibição de filmes inspirados em sua obra, debates e palestras que terminam neste sábado.

Os eventos acontecem no Museu de Arte Latinoamer­icana, o Malba, na Biblioteca Nacional, que também exibe o manuscrito do clássico “A Peste”, e na Villa Ocampo. Também foi lançado o livro “Victoria Ocampo — Albert Camus” (ed. Sudamerica­na, importado), com as missivas que os escritores trocaram entre 1946 e 1959.

Depois de Buenos Aires, Camus seguiu sua viagem pela América do Sul, indo a Santiago.

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