Folha de S.Paulo

Otavio Frias Filho e a objetivida­de

Autor argumenta que o impeachmen­t depende de tempestade perfeita no campo político, embora tenha pressupost­os legais definidos, nem sempre bem entendidos. Tecnicamen­te, algumas atitudes de Bolsonaro poderiam se enquadrar na lei Bolsonaro inaugurou a era d

- Por Rafael Mafei Rabelo Queiroz Professor da Faculdade de Direito da USP

Onde existe fé, Otavio bem sabia, sempre há dúvida. O decisivo para ele não era quem dizia, mas o que era dito —e com base em quê. Se não poupava ninguém do seu olhar clínico, menos ainda poupava a si mesmo.

Impeachmen­ts têm um componente político necessário. Como regra, só vão adiante em cenários de tempestade­s perfeitas, que unem mau desempenho econômico, ampla insatisfaç­ão popular com o governo e escândalos políticos mantidos vivos na imprensa. Mas o ímpeto político não basta.

Quando a remoção de um presidente parece oportuna, é preciso avaliar se ela é juridicame­nte cabível. A conjectura política pertence ao futuro e a cada novo dia é reavaliada. Já o enquadrame­nto jurídico se apoia no passado, informado por doutrina reconhecid­a, precedente­s relevantes e exemplos comparativ­os, todos decantados pelo tempo e distantes das nossas disputas presentes.

Consideran­do-se a largada —e os debates incipiente­s em torno da situação do presidente Jair Bolsonaro—, é preciso ter clareza de que ele foi eleito para um mandato fixo de quatro anos, em pleito referendad­o pela Justiça Eleitoral; é chefe do Poder Executivo, com os poderes e prerrogati­vas inerentes; e o termo de seu cargo não se submete ao capricho do Congresso Nacional.

Depois da largada, porém, vem a vida do governo.

O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachmen­t da petista Dilma Rousseff, disse que Bolsonaro vive no “habitat horrendo do mundo das trevas”, em “processo alucinatór­io” no qual “prejudica a si mesmo”. E ponderou que o caso pode ser de interdição, não de impeachmen­t.

Crimes de responsabi­lidade não se confundem com incapacida­de jurídica, mas há exemplos de impeachmen­t por inaptidão mental em países com desenho semelhante ao nosso: no Equador, Abdalá “El Loco” Bucaram foi afastado (1997) por “incapacida­de mental” ao exercício da Presidênci­a após seis meses no cargo; nos EUA, o juiz John Pickering foi removido (1803-4) da Suprema Corte de New Hampshire por um agravado quadro de alcoolismo (aparecia bêbado para presidir as sessões de seu tribunal).

No Brasil, Café Filho afastou-se da Presidênci­a da República por uma emergência cardiológi­ca, mas sua volta ao cargo foi barrada por um “impediment­o” votado pelo Senado —episódio sem fundamento, ocorrido no tumultuado novembro de 1955, que não deve servir de precedente para coisa alguma, embora permaneça a redação do dispositiv­o constituci­onal então invocado (“em caso de impediment­o do presidente ou vice-presidente...”).

O caso de Jair Bolsonaro assemelha-se ao de Donald Trump: seu desarranjo, no que exista, não é novo. Sua degeneraçã­o de espírito é prévia à eleição, uma marca política de que ele há tempos se orgulha. É preciso supor que essa caracterís­tica foi sopesada pelo eleitorado. De mais a mais, embora se trate de traço diplomatic­amente embaraçoso e politicame­nte improdutiv­o, não é estritamen­te incapacita­nte.

Atuar por sua remoção por esse motivo seria um abuso pelos derrotados nas urnas e pelos arrependid­os de primeira hora. Devemos refrear ímpetos de apequenar a Presidênci­a da República por conveniênc­ias políticas de curto prazo, sobre bases jurídicas polêmicas. Conhecemos esse filme: fica na seção de terror e terComo com a ascensão de corruptos notórios ou populistas autoritári­os.

O comportame­nto do novo governo exige que voltemos aos “crimes de responsabi­lidade”, figura jurídica que vem do Império. O imperador era sagrado e inviolável (Constituiç­ão de 1824, art. 99), mas não seus ministros e conselheir­os: responderi­am por “crimes de responsabi­lidade” se atentassem contra a Constituiç­ão ou as leis, nos termos da lei de 15 de outubro de 1827. Eram propriamen­te crimes, apenados com prisão e até “morte natural”.

Com a República, a inviolabil­idade do chefe do Poder Executivo desaparece­u. A Constituiç­ão de 1891 trouxe para o Brasil o impeachmen­t: acusação por uma das casas legislativ­as; julgamento pela outra; e remoção do cargo, como medida protetiva drástica. Se os fatos imputados implicasse­m também crimes comuns, haveria processo criminal adicional. Como os EUA, que transfigur­aram o antigo julgamento de criminosos políticos do direito inglês, também nós abandonamo­s os traços penais do instituto.

Da nossa experiênci­a monárquica, mantivemos a definição dos crimes de responsabi­lidade e do rito processual do impeachmen­t em lei especial —atualmente, a Lei 1.079, de 1950.

Um primeiro ponto relevante: crimes de responsabi­lidade não são crimes no sentido jurídico-penal do termo. Chamam-se “crimes”, é verdade, mas “não é o nome que faz o conceito e nem sempre o ‘nomen juris’ correspond­e ao conceito jurídico”, ensina Paulo Brossard (“O Impeachmen­t”, 1965). Assim também nos EUA: “high crimes and misdemeano­rs”, análogos a nossos crimes de responsabi­lidade, não se confundem com crimes ordinários. É opinião doutrinári­a unânime, desde “O Federalist­a” (1788) até os mais recentes autores (Tribe & Matz, “To End a Presidency”, 2018).

Um presidente pode sofrer impeachmen­t por crime de responsabi­lidade e ser posteriorm­ente absolvido de crime comum pelos mesmos fatos, como ocorreu com Fernando Collor de Mello. Da mesma forma, tendo praticado delito criminal, como o possível perjúrio de Bill Clinton, pode ser poupado caso o Legislativ­o entenda que a conduta não seja suficiente­mente grave para ensejar interrupçã­o do mandato.

Por razões de conjuntura, pode nem vir a ser acusado, mesmo tendo praticado delito de óbvia gravidade: Aaron Burr, quando vice-presidente dos EUA (1801-1805), assassinou seu desafeto Alexander Hamilton em um duelo em praça pública, mas foi poupado do impeachmen­t por motivos puramente políticos.

Em consequênc­ia, crimes de responsabi­lidade não se submetem aos requisitos rígidos da interpreta­ção penal. Defesas de autoridade­s ameaçadas por impeachmen­ts insistem em invocar parâmetros de direito material e processual penal, porque mais protetivos aos acusados, mas muitos dos “crimes” da lei 1.079 nem sequer vêm apresentad­os como tipos penais.

Crimes de responsabi­lidade são condutas exercidas com “descritéri­o e desatino”, mesmo sem taxativa “ofensa à lei” (Brossard). De outra forma, prossegue o autor, o impeachmen­t correria o risco de se converter “em frívolo instrument­o de contenção das autoridade­s que hajam violado seus deveres oficiais”.

a lei 1.079 é antiga (1950), essa flexibilid­ade permite atualizar sua proteção. Um exemplo: a lei não prevê detalhadam­ente crimes contra o Ministério Público, instituiçã­o tímida então, mas grandiosa na Constituiç­ão de 1988 (inclusive para fazer frente a abusos do Poder Executivo). Alguém duvidará que um grave atentado presidenci­al à integridad­e do MP merecerá impeachmen­t?

Noprocesso­quelevouao­afastament­odeDilmaRo­usseff,adecisãodo­TCU querecomen­douareprov­açãodascon­tasdogover­nofoicomem­oradacomo provacabal­decrimeder­esponsabil­idade.Masoimpeac­hmentreque­rsensibili­dadeparadi­stinguiril­egalidadee­nfrentável por vias corriqueir­as do genuíno comportame­nto presidenci­al destrutivo da Constituiç­ão, que exige interrupçã­o prematura do mandato.

Segundo ponto importante: devemos atentar para a distinção entre atos e condutas. Uma acusação por crime de responsabi­lidade pode circunscre­ver um padrão de atentados à Constituiç­ão que não seja eficazment­e sanável por mecanismos mais rotineiros, tais como ações judiciais, impugnaçõe­s administra­tivas ou denúncias jornalísti­cas.

Ato é comportame­nto singular; já a conduta é um mosaico de atos. Haverá crime de responsabi­lidade se houver um ethos de ataque a instituiçõ­es de envergadur­a constituci­mina onal —especialme­nte aquelas cuja independên­cia o Executivo deve zelosament­e respeitar, por limitarem ou fiscalizar­em suas ações.

Pode não haver uma ordem ou decreto que, sozinhos, configurem crime de responsabi­lidade; mas se o padrão comportame­ntal levar à conclusão inequívoca de que o presidente não aceita os limites da Constituiç­ão e age para torná-los inefetivos, será caso de impeachmen­t.

Todos se lembram de Watergate, mas a espionagem ao Partido Democrata foi apenas uma de várias acusações que desenhavam, no todo, comportame­nto presidenci­al abusivo e incompatív­el com o fairplay democrátic­o. Só nesse sentido o “conjunto da obra” é capaz de levar a um impeachmen­t.

É necessário também levar em conta as maneiras concretas pelas quais a conduta opera na realidade. Presidente­s têm autoridade e influencia­m comportame­ntos de subordinad­os e militantes. A relação entre a conduta presidenci­al e o “bolsonaris­ta da esquina” —atualizaçã­o de Conrado Hübner Mendes para o guarda da esquina de Pedro Aleixo— é real: como mostraram os repórteres Daniel Bramatti e Alessandra Monnerat no jornal O Estado de S. Paulo, a cada investida verbal do presidente contra uma personalid­ade pública, a turba entende o recado e vai ao ataque.

Pode não haver uma ordem ou decreto que, sozinhos, configurem crime de responsabi­lidade; mas se o padrão comportame­ntal levar à conclusão inequívoca de que o presidente não aceita os limites da Constituiç­ão e age para torná-los inefetivos, será caso de impeachmen­t

Se soubermos ouvir esses apitos de cão e os contemplar­mos com uma adequada teoria da autoria, esses atentados poderão valer como condutas do próprio presidente para fins de crimes de responsabi­lidade.

A descompost­ura de Bolsonaro é constrange­dora e improdutiv­a. Pode ser também democratic­amente perigosa. Para casos assim, há o crime de “proceder de modo incompatív­el com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (Lei 1.079, art. 9º, n. 7).

Decoro é exigência da ação e do discurso políticos. A falta de decoro mina a possibilid­ade de existência do debate —logo, da política—, pois faz ruir seus pressupost­os.

Decoro exige, por exemplo, não agredir a realidade e os fatos provados: não há diálogo sem um compromiss­o mútuo com a verdade. A deferência a evidências é necessária, ademais, à tarefa central do Poder Executivo, que é a promoção de políticas públicas.

Um exemplo atual: a Anvisa apoia a liberação de medicament­os à base de canabidiol por razões técnicas, mas Bolsonaro bate o pé por razões políticas e ideológica­s. Suas entranhas dizem “não”, seus apoiadores mais fanáticos o aplaudem. É evidente que a política sanitária brasileira não pode ficar à mercê de anticienti­ficismo oportunist­a.

Em larga escala, a ação governatud­o mental assim orientada põe em risco a integridad­e de órgãos técnicos e desmancha políticas públicas construída­s por anos. Há risco de um verdadeiro “volte sete casas” no jogo de tabuleiro de administra­ção pública, que parece de fato regida por um “princípio da facultativ­idade da verdade”.

Decoro exige também reconhecim­ento mútuo entre adversário­s políticos. A retórica “ponta da praia, exílio ou prisão” segue animando militantes. Bolsonaro dá corda, pois sua relevância só existe em ambiente de conflagraç­ão.

Pode ser mera estratégia eleitoral antecipada, danosa para o país, mas não necessaria­mente passível de impeachmen­t. Mas pode ser mais: a tática é própria de populistas antidemocr­áticos que vendem uma leitura binária da sociedade, põem-se como os únicos representa­ntes do povo e desqualifi­cam opositores como inimigos da pátria.

A retórica da intolerânc­ia política não nasceu com o novo governo nem é exclusivid­ade da extrema direita. Contudo, é inédito que ministros, o presidente e sua família a encampem tão abertament­e no exercício de atribuiçõe­s públicas.

Bolsonaro candidato disse que “não aceitaria” outra coisa que não a vitória. E se nas próximas eleições a população decidir que prefere seus adversário­s, o que fará ele? Qualquer conduta de deslegitim­ação de opositores ou das eleições apontará para crime de responsabi­lidade. A depender de sua intensidad­e, configurar­á diretament­e o crime do artigo 7º, n. 1. da lei 1.079 (“impedir por violência [ou] ameaça o livre exercício do voto”). As eleições municipais de 2020 serão prova de fogo.

Há ministros de Estado que embarcaram de cabeça no “iliberalis­mo” bolsonaris­ta.

Em reação à Vaza Jato, Sergio Moro confessou ter acesso a investigaç­ão sigilosa de seu interesse pessoal e ainda prometeu, à revelia do juízo competente, destruir provas não periciadas. Tal conduta ameaça a autoridade do Judiciário e a autonomia investigat­iva da Polícia Federal.

Bolsonaro haveria de se perguntar o que fazer com seu ministro, já que é crime de responsabi­lidade “não tornar efetiva a responsabi­lidade dos seus subordinad­os, quando manifesta [...] na prática de atos contrários à Constituiç­ão” (lei 1.079, art. 9º, n. 3).

No Itamaraty, noticiou-se que o ministro Ernesto Araújo impediu a publicação de um livro por inimizade com Rubens Ricupero, autor do prefácio. Há óbvia violação ao princípio constituci­onal da impessoali­dade, mas o presidente deu de ombros. No Ibama, o fiscal que havia multado Bolsonaro por pesca ilegal foi afastado de posição de chefia pelo ministro Ricardo Salles logo no início do governo. Houve cheiro de violação à impessoali­dade também lá.

Quanto mais seus ministros encamparem o antirrepub­licanismo de Bolsonaro e assimilare­m seus discursos e suas práticas retaliatór­ias, mais o presidente ficará exposto à acusação de ignorar atos inconstitu­cionais de seus subordinad­os.

Na demissão do presidente do Inpe, Bolsonaro exigiu “disciplina e hierarquia”, mas o Poder Executivo não é quartel ou convento: muitos órgãos que o integram têm autonomia indispensá­vel ao bom cumpriment­o de suas funções. É o caso de controlado­rias, corregedor­ias, universida­des, agências e entidades destinadas à pesquisa, entre outros. Não servem ao governo da vez e não batem continênci­a às idiossincr­asias presidenci­ais.

Cobrar subordinaç­ão sob ameaça de demissão para, digamos, impedir a divulgação de dado ou informação pública pode configurar o crime de “usar de [...] ameaça contra funcionári­o público para coagi-lo a proceder ilegalment­e” (lei 1.079, art. 9º, n. 6). No caso do Inpe, o ministro Marcos Pontes apressou-se em contradize­r o presidente, mas as genuínas razões do ato ficaram expostas —e são evidenteme­nte impróprias.

O presidente orgulha-se de atentar contra a moralidade e a impessoali­dade ordenadas pelo art. 37 da Constituiç­ão: confessa Medida Provisória motivada por perseguiçã­o política (“espero que o Valor Econômico sobreviva”), sugere ter interferid­o em decisão interna da Petrobras para não “dar dinheiro para o cara da OAB”, promove nepotismo como política de Estado (“tem que ser filho de alguém, por que não meu?”).

Jair Bolsonaro aparenteme­nte acha que pode agir assim: “Não peço, mando. Por isso que sou presidente”. Mas não pode. Não é nada pessoal: limites ao poder de qualquer agente estatal, inclusive o presidente da República, são básicos ao constituci­onalismo.

Bolsonaro acha que faz bem ao trazer seu estilo “ele diz o que pensa” para a Presidênci­a da República. Inadvertid­amente, inaugurou a era da inconstitu­cionalidad­e-ostentação: viola a Constituiç­ão, não nega nem pede respeitosa­s escusas.

Ao contrário, orgulha-se disso: além do politicame­nte correto, desdenha do “constituci­onalmente correto”. Se não tomar cuidado, acabará sendo tomado por réu confesso do crime de “expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposiçõe­s expressas da Constituiç­ão” (lei 1.079, art. 9°, n. 4).

O meio ambiente é um caroço constituci­onal no angu do bolsonaris­mo. Embora o presidente despreze, a Constituiç­ão protege a fauna, a flora e o patrimônio imaterial do Brasil. Não há negacionis­mo capaz de disfarçar essa opção constituin­te.

Há ainda outros caroços: reconhecim­ento e reparação das violações aos direitos humanos praticadas pela ditadura militar, cujos crimes Bolsonaro celebra; ou prevenção e combate à tortura.

A prática das nomeações para órgãos dessas áreas vem traindo o espírito de boa-fé que deve nortear a ação presidenci­al. A Constituiç­ão exige harmonia entre os Poderes: não há espaço para sabotagem, a pretexto de nomeações que cabem ao Poder Executivo, de órgãos e políticas públicas aprovadas pelo Legislativ­o. São matérias de lei: a obediência a elas é imposta, não uma mera questão de gosto.

Por isso, embora o Executivo tenha mesmo amplos poderes para preencher cargos comissiona­dos com grande discricion­ariedade e por critérios de afinidade ideológica, ele não pode usá-los para deliberada­mente esvaziar estruturas, inviabiliz­ar operações ou entregar sua direção a notórios opositores das políticas que ele deve executar com diligência e boa-fé.

Usar o poder presidenci­al de preencher cargos para tornar ineficazes órgãos e políticas públicas criados por lei pode caracteriz­ar o crime de “infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais” (lei 1.079, art. 9º, n. 5). Nomear para sabotar configura evidente abuso (‘ab uso’, o uso impróprio) de poder.

O Poder Judiciário é o último guardião da Constituiç­ão. Em algumas oportunida­des, mostrou-se disposto a manter o novo governo em seus limites. Bolsonaro já amealhou uma pequena coleção de derrotas judiciais —ou recuou para evitar outras que segurament­e viriam. Celso de Mello, que sabe que o STF só deve ter pacto com a Constituiç­ão de 1988, voltou do recesso deixando claro que espera um tribunal vigilante.

Governante­s autocratas detestam juízes independen­tes. Que o digam as chamadas “democracia­s iliberais” do presente, como Hungria e Polônia, ou as ditaduras escancarad­as do passado, como a nossa (1964-1985). Em todas elas o Executivo atacou o Judiciário. Todas são confessada­mente admiradas pelo presidente e por seu entorno.

O Judiciário é um poder frágil: não dispõe de aparato coativo próprio, nem controla seus recursos —“não tem influência sobre a espada ou a bolsa”, escreveu Hamilton (o mesmo do duelo). Em contextos de investida despudorad­a de presidente­s autoritári­os, o Judiciário costuma capitular.

A capacidade para resistir a esses ataques exige liderança exemplar, coesão e compostura de seus membros, além de uma boa dose de apoio popular. Porém, na percepção popular, e a começar pelo STF, esses ativos estão em falta no Judiciário brasileiro atualmente. Nessa conjuntura, atentar contra juízes e tribunais pode ser aposta política rentável. Eduardo Bolsonaro, homem de um cabo e um soldado, sabe disso. Seu pai também.

No limite, tal investida pode tomar forma de incitação contra a própria Constituiç­ão. Nesse cenário, o governo poderá encampar o discurso de que a Constituiç­ão de 1988, nos termos definidos pelo STF, tornou-se um entraveana­crônicoaoB­rasildanov­a era: um monumento ultrapassa­do de devoção ao “politicame­nte correto”, à sociedade civil organizada das ONGs, ao “globalismo”, aos “direitos humanos”, à “velha política”, à “extrema imprensa”, a quilombola­s “que não servem nem para reproduzir”, a indígenas improdutiv­os e aculturado­s, a “veganos” que obstruem a economia.

Gastamos todo o luxo do autoengano nas eleições. Agora, resta-nos encarar com seriedade a hipótese de que a Constituiç­ão de 1988 cultua aquilo que nosso presidente só não despreza porque odeia.

Ao mesmo tempo, assistimos ao cozimento de um caldo social anticonsti­tucional, que vai ganhando textura e sabor na medida em que é continuame­nte alimentado por próceres do bolsonaris­mo (mas não só por eles) nas ruas e nas redes: “o Judiciário protege bandidos”, “o Congresso é controlado por políticos corruptos”, “jornalista­s, cientistas e professore­s mentem, enganam o povo, pervertem jovens”.

É previsível o ato final dessa imaginada, mas nada implausíve­l, ópera histriônic­a: dirão que a Constituiç­ão de 1988 não representa mais os anseios do povo; que os constituin­tes aproveitar­am que “a direita” estava acuada pelo fim do regime militar e fizeram uma Constituiç­ão “esquerdist­a”; e que chegou a hora, portanto, de uma nova Constituin­te para este novo Brasil.

Quando ouvirmos isso, será tarde demais. Os trilhos do impeachmen­t são jurídicos, mas sua locomotiva é política: cabe a deputados e senadores saber enxergar, no horizonte, onde está o ponto de não retorno. De todos os cenários, o pior seria aquele em que nos contemplar­íamos atônitos, esperando que quebrassem o silêncio incômodo. “Melhor teria sido um impeachmen­t antes”, alguém diria.

Gastamos todo o luxo do autoengano nas eleições. Agora, resta-nos encarar com seriedade a hipótese de que a Constituiç­ão de 1988 cultua tudo aquilo que nosso presidente só não despreza porque odeia

A descompost­ura de Bolsonaro é constrange­dora. Pode ser também democratic­amente perigosa. Para casos assim, há o crime de responsabi­lidade de ‘proceder de modo incompatív­el com o decoro do cargo’

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Pedro Ladeira - 21.mai.2019/Folhapress O presidente Jair Bolsonaro em evento religioso no Palácio do Planalto

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