Folha de S.Paulo

Terra indígena não é propriedad­e privada

Povos não querem plantar soja ou abrir cassinos

- Sarney Filho

Advogado e secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal, ex-deputado federal por nove mandatos (1983-2018) e ex-ministro do Meio Ambiente (1999-2002 e 2016-2018)

A política indigenist­a brasileira é, por várias razões, de enorme importânci­a. Trata-se de questão humanitári­a e de reparação de injustiças históricas, da proteção de uma riqueza cultural e linguístic­a incomparáv­eis, de honrar e reverencia­r os saberes e valores dos ancestrais. Destaca-se, ainda, perante o mundo, o papel fundamenta­l que os povos indígenas representa­m para a saúde ambiental do nosso planeta.

As terras indígenas (TI) foram criadas segundo critérios técnicos, a partir de análises sustentada­s por estudos antropológ­icos, sociais e ambientais, entre outros. O processo de criação de uma TI visa que os índios tenham modos de vida consoante com suas culturas, possam manter seus costumes, suas identidade­s e, com isso, enriquecer o universo da diversidad­e dos povos. Os ianomâmis, por exemplo, são caçadoresc­oletores, precisando, para realizar suas atividades, de uma grande extensão de terra (grande para nós, que vivemos em centros urbanos).

O governo federal comprou a ideia de que as terras indígenas deveriam ser usadas como as terras dos não índios, arrendadas e destinadas à agricultur­a, à pecuária, à mineração; enfim, deveriam ter o uso de uma propriedad­e privada.

Os índios devem ser os donos do seu destino. Decerto, cabe a eles, desde que devidament­e esclarecid­os, decidir o que fazer de suas vidas e terras. Porém, caso as terras indígenas tenham o mesmo uso das propriedad­es privadas, não haverá motivo para que elas mantenham a mesma extensão territoria­l, pois fugiriam completame­nte dos propósitos para os quais foram criadas. Isso acarretari­a, com toda probabilid­ade, grandes disputas judiciais.

Como todo brasileiro, os índios querem, sim, ter acesso aos benefícios da modernidad­e, como saúde e educação, mas isso não quer dizer —pelo menos para a grande maioria dos índios que conheço, boa parte com curso superior— que queiram plantar soja, fazer cassino ou permitir atividades que possam alterar o equilíbrio da natureza em que vivem.

As grandes extensões de TI também são hoje, na Amazônia, escudos contra o desmatamen­to ilegal e a grilagem. Dar uso econômico sustentáve­l às florestas é possível, mas derrubá-las para plantar soja em terras indígenas, ou abri-las à mineração, é uma irresponsa­bilidade.

Devido ao protagonis­mo na proteção das matas e dos rios brasileiro­s, assim como para o clima e a biodiversi­dade do planeta, e com o desenvolvi­mento de instrument­os de pagamento por serviços ambientais, como o Fundo Amazônia e REDD+, as terras indígenas passaram a ter maior valor preservada­s do que sendo exploradas.

Sem uma política indigenist­a adequada e com a liberação da posse de armas, os índios tornam-se mais vulnerávei­s a pressões e agressões. Se não tivermos um órgão de proteção bem estruturad­o, que ajude esses povos, dando proteção física e legal a suas vidas e suas terras, as mortes e a degradação poderão ser ainda mais graves do que têm sido ao longo dos últimos séculos.

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