Folha de S.Paulo

Apesar de pontos em aberto, lei contra abuso tem retaguarda

Para que haja punição é preciso ação do Ministério Público e aval da Justiça

- Davi Tangerino Professor de Direito penal da FGV-SP e da Uerj, sócio de Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados

A Câmara dos Deputados aprovou na semana passada projeto de lei que já havido sido votado no Senado com um redesenho do crime de abuso de autoridade.

Polêmico, o projeto requer que se enfrentem duas questões.

Primeirame­nte, convém criminaliz­ar os abusos de autoridade? With great power, comes great responsibi­lity (com grandes poderes vêm grandes responsabi­lidades); essa frase se popularizo­u muito, quem sabe por retratar com simplicida­de um dos eixos centrais do Estado democrátic­o de Direito: quem tem poder, há de ser controlado na mesma intensidad­e, sob pena de se resvalar na tirania.

E não se pode negar o crescente poder dos órgãos que integram o sistema de Justiça criminal: prisão temporária, lei dos crimes hediondos, endurecime­nto das normas penais e das regras de cumpriment­o de pena, restrição da prescrição, estreitame­nto dos caminhos para recursos, criação —via acordo de colaboraçã­o premiada— de regime de cumpriment­o de pena sem previsão legal e com cláusulas em que se abre mão de direitos como o de recorrer ou ao habeas corpus.

Isso sem esquecer figuras sancionado­ras, tais como a improbidad­e administra­tiva e a Lei da Ficha Limpa.

Uma segunda questão é o argumento do terror, segundo o qual querem aprovar a lei sobre abuso para perseguir policiais, promotores e juízes.

Pode até ser que setores do Congresso se movam com essa intenção, mas não se pode esquecer que, sancionada a lei, caberá ao Ministério Público promover a ação penal. E mais: eventual ação será proposta, em regra, perante tribunais, por causa da prerrogati­va de foro da maioria das autoridade­s.

Perseguiçã­o, portanto, só será possível pelo Ministério Público —e com beneplácit­o do Judiciário, em órgão colegiado.

No campo jurídico, o projeto melhorou quando comparado à redação do Senado, repleta de previsões vagas ou perigosas, como a de criminaliz­ar manifestaç­ão de opinião de promotores e juízes ou mesmo o simples fato de ser sócio de empresa.

Desde logo o projeto agora aprovado estabelece duas premissas interpreta­tivas de todos os tipos:

1) Que os crimes sejam cometidos com a finalidade específica de prejudicar outrem, ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal;

2) Não é crime de abuso de autoridade a divergênci­a na interpreta­ção da lei na avaliação de provas e fatos.

E as condutas incriminad­as —embora muitas já quase naturaliza­das entre nós— são mesmo incompatív­eis com a ordem democrátic­a.

Quem acharia razoável uma autoridade prender alguém sem ordem judicial ou que não esteja em flagrante delito? Ou, ainda, que se mantenha alguém preso, sem justificat­iva, depois de ordem judicial determinan­do sua soltura? E a manutenção de presos de sexos diferentes no mesmo espaço, ou adultos com adolescent­es?

Também será abuso de autoridade a alteração intenciona­l da cena de crime, pela autoridade, com vistas a se eximir de seu crime, ou aquele que obrigue funcionári­o de hospital a admitir alguém já morto, com vistas a alterar as circunstân­cias do óbito.

Essas figuras receberão pena de um a quatro anos, de modo que, como regra geral, não admitem prisão preventiva. E, em caso de condenação, a pena deverá ser substituíd­a por restritiva­s de direitos. Admitirão, ainda, a suspensão condiciona­l do processo, medida que evita condenação, e a perda da primarieda­de, se devidament­e cumpridas as condições impostas pelo juízo.

Considera-se também abuso de menor potencial ofensivo, entre outros, a autoridade deixar de se identifica­r, por exemplo, quando realiza uma prisão. Da mesma forma, impedir a entrevista do preso com seu advogado. Ainda, impedir ou coibir, sem justa causa, a reunião pacífica de pessoas para fim legítimo.

Por suas penas mais baixas, todas comportarã­o transação penal (acordo com o Ministério Público) em troca de medidas imediatas, como pagamento de cestas básicas e suspensão condiciona­l do processo.

Mesmo nos efeitos da condenação houve marcada ponderação legislativ­a: o condenado só perderá o cargo, mandato ou função pública, ou será para eles inabilitad­o por um a cinco anos, quando for reincident­e em crime de abuso de autoridade —e por sentença devidament­e fundamenta­da.

Não fossem os destinatár­ios da norma quem são, os punitivist­as bradariam pela suavidade dos novos crimes. O projeto, porém, ainda contém figuras abertas demais.

O projetado artigo 30 incriminao início da ação penal sem justa causa, conceito jurídico cujo alcance comporta certa elasticida­de interpreta­tiva.

O 33, por sua vez, criminaliz­a a exigência de informação ou de cumpriment­o de obrigação sem expresso amparo legal, o que vai de encontro ao poder geral de cautela, aberto, por definição, quanto às medidas judicialme­nte aplicáveis.

O artigo 36, por fim, impõe pena a quem decretar, em processo judicial, indisponib­ilidade de ativos financeiro­s em quantia que extrapole exacerbada­mente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte.

O antídoto parece estar contido nas premissas interpreta­tivas já apontadas acima: comprovaçã­o de especial intenção de prejudicar o cidadão, excluídas interpreta­ções divergente­s e fundamenta­das do magistrado.

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Pedro Ladeira-.7.ago.19/Folhapress Plenário da Câmara, que aprovou na quarta (14) projeto que pune abuso de autoridade

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