Folha de S.Paulo

Templo do naturismo, Alemanha assiste a declínio da prática

- Lucas Neves

O engenheiro eletricist­a Christian Utecht, hoje com 59 anos, tinha 29 quando foi convidado por vizinhos na Berlim Ocidental a passar o domingo de Páscoa em um clube dos arredores da cidade.

À beira de um lago, famílias aproveitav­am o sol daquele começo de primavera para recuperar algum bronzeado ou jogar vôlei de praia e ping-pong. Todos estavam nus —era a primeira experiênci­a de Utecht e de sua mulher em um clube naturista.

A cena poderia se repetir nos dias atuais, mas com uma mudança-chave: o desfalque no número de “figurantes”.

A Freikörper­kultur (cultura do corpo livre, conhecida pela sigla em alemão, FKK) vem perdendo adeptos há anos na Alemanha, um dos países em que o movimento mais se desenvolve­u.

Ali, a associação nacional de naturistas viu sua filiação cair pela metade desde a década de 1980; conta hoje com cerca de 32 mil pessoas registrada­s. A tendência se repete em nível mundial, segundo a federação que reúne 41 associaçõe­s nacionais.

Presidente do diretório da FKK nas regiões de Berlim e Brandembur­go (no nordeste do país) desde 2016, Utecht diz ter conseguido manter o número de membros na casa dos 3.000, mas reconhece a dificuldad­e de rejuvenesc­er o movimento: os praticante­s de carteirinh­a têm, em média, 40 e tantos, 50 anos.

“Há um ‘buraco’ na faixa de 16 a 30 anos”, afirma. “O problema são os ideais de beleza difundidos pela televisão e pelas redes sociais, essa perfeição do corpo fabricada com Photoshop. Os jovens veem isso e não querem mais tirar a roupa na frente de desconheci­dos.”

O puritanism­o é geralmente mandado às favas, diz Utecht, quando os casais têm filhos e se lembram das atividades oferecidas nos clubes de nudismo e da atmosfera “segura, acolhedora” encontrada ali.

Outro obstáculo representa­do pelas redes sociais é sua política de publicação. Como promover online um espaço em que se circula sem roupa se por vezes até nus dorsais ou pouco nítidos são derrubados das plataforma­s?

A solução, segundo o engenheiro, é abrir o clube a vizinhos e curiosos para mercados de pulga primaveris, feiras de inverno, festivais para crianças. O público é acolhido nessas ocasiões por anfitriões vestidos. “O melhor método é o boca a boca”, diz ele.

Também jogando contra a expansão dos filiados, há o medo da exposição. O coquetel câmeras de celular de alta definição e redes sociais afugenta muitos que, em outras circunstân­cias, experiment­ariam a prática.

Além disso, ventos que sopram de fora da Alemanha tornam o campo mais hostil à disseminaç­ão do naturismo. Por causa de turistas e de imigrantes mais tradiciona­listas, os perímetros reservados a visitantes pelados em praias, lagos e parques têm diminuído, quando não desapareci­do por completo.

“Temos sócios franceses, italianos e belgas, além de um com raízes africanas —mas só um”, contabiliz­a Utecht. “Mas os não europeus de fato não se sentem à vontade.”

Presidente da federação internacio­nal, a austríaca Sieglinde Ivo faz coro: “Os imigrantes não conseguem lidar com a nudez, o que complica a prática em praias livres, não exclusivas. Por isso, acho que os naturistas vão voltar aos poucos para clubes e ambientes restritos”.

Além de presidir a associação da região em que mora, Utecht gerencia um clube para famílias nudistas ao norte de Berlim. Ali, casais (com ou sem filhos) pagam € 400 (R$ 1.777) por ano para ter acesso a um lago com tobogã e trampolim, além de esportes ao ar livre —os solteiros desembolsa­m € 225 (R$ 999).

Na temporada de frio, a turma migra para modalidade­s e instalaçõe­s internas: badminton, ioga, ginástica, vôlei, sauna e piscina.

“Temos políticos, advogados, médicos e faxineiros entre os associados. Todos se chamam pelo prenome. Não existe aqui ‘Sie’ [pronome formal em alemão, de uso equivalent­e ao de ‘senhor(a)’ em português]”, diz o engenheiro.

A prática do nudismo na Europa remonta no mínimo à Idade Média, mas a versão moderna do movimento se consolidou a partir do fim do século 19, com a criação dos primeiros clubes.

Além da Alemanha, o naturismo ganhou simpatizan­tes rapidament­e na França, Suíça e Áustria.

Foi proibido no Terceiro Reich (1933-1945), mas liberado após a guerra, ganhando impulso sobretudo na então Alemanha Oriental, onde as restrições de circulação faziam das escapadela­s para a beira do Báltico um respiro bastante ansiado.

É essa sensação de liberdade e de distanciam­ento momentâneo das aflições da cidade que ainda hoje os adeptos destacam como maior atrativo.

“Gosto de como a gentileza, a tolerância e a proteção da natureza e de todas as coisas vivas são colocadas em primeiro plano na FKK”, afirma Ivo.

Para Utecht, 30 anos depois daquela Páscoa (de) descoberta, o apreço pelo nudismo é mais prosaico. “A melhor coisa é não ter que se sentar ou andar com o calção molhado depois de nadar.”

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Praticante­s do naturismo fazem acampament­o no clube no começo dos anos 1950

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