Folha de S.Paulo

Argentina poderá entrar em hiperinfla­ção se Macri não contiver crise

Economista compara gradualism­o das reformas de Macri a um alcoólatra que tenta se curar substituin­do uísque por vinho

- Sylvia Colombo

“Se Macri não conseguir conter a atual crise, daqui até dezembro correremos o risco de uma hiperinfla­ção. Eu, que já vivi várias dessas crises, sei que aí só serve agarrar-se na cadeira ou ir a Ezeiza [o aeroporto internacio­nal]”, diz o economista Roberto Cortés Conde, 87, professor aposentado da Universida­de de Buenos Aires, com passagens pelas universida­des de Chicago e Harvard.

Em entrevista à Folha, no café de um hotel portenho, Cortés Conde disse que considera que o presidente Mauricio Macri errou ao não fazer reformas e ajustes mais profundos logo no começo do mandato.

“Mas é muito mais fácil dizer isso aqui sentado confortave­lmente do que montado no cavalo descontrol­ado que é a política argentina.”

Como o sr. vê essa nova crise argentina?

Esse fenômeno da crise que se repete é um pesadelo para uma pessoa como eu, da minha idade, que venho vendo isso desde o período de [Juan Domingo] Perón [que governou de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974] e atravessei todas [as crises], a de 1989, a de 2001.

A repetição virou parte do fenômeno da crise argentina e a razão pela qual é perversa, porque cria traumas, aterroriza a população. Quando se faz a piada de que a única saída para o país é Ezeiza [o aeroporto internacio­nal de Buenos Aires], não é exatamente uma piada. Já há muita gente pensando em ir embora. Tampouco a comparação com a Venezuela, embora seja um grande exagero, é tão irreal assim.

De maneira geral, o que provoca essa caracterís­tica cíclica das crises argentinas?

Há crises de inflação e de deflação. A que estamos vivendo agora é o primeiro caso. Em 1999, no fim do período de Carlos Menem (1989-1999), o que tínhamos era deflação, ninguém comprava nada, e acabou ocorrendo a crise de 2001.

O desequilíb­rio que temos e que gera essas crises repetidas está relacionad­o ao modelo político argentino. Quando estamos num momento como este, o que convém a um presidente é tentar jogar a bomba para o governo seguinte.

Alguns não conseguem. Um deles foi Raúl Alfonsín [19831989], que herdou uma crise por causa da dívida externa adquirida no começo dos anos 1980 pelo governo militar [1976-1983] e não conseguiu nem resolver nem passar adiante. Explodiu na mão dele e fez com que tivesse de entregar o cargo mais cedo.

O que deu a Menem a possibilid­ade de governar dez anos foi o fato de a bomba ter explodido com Alfonsín. Depois, a dolarizaçã­o gerou um desequilíb­rio macroeconô­mico grande. A bomba foi se formando de novo porque, ao ter o peso atrelado ao dólar, e estando com uma política fiscal deficitári­a, não pôde fazer ajuste, porque a economia estava dolarizada.

O que resta fazer nessa hora? Tomar medidas duras, baixar gastos, e isso produz recessão. E a recessão é o mais antipático, mais antipopula­r que pode haver.

O sr. é da corrente que pensa que Macri deveria ter feito o tal choque neoliberal logo de cara, e não adotar a política do gradualism­o, de ir retirando subsídios aos poucos?

Sim, creio que ele errou ao adotar o gradualism­o e deveria ter feito os ajustes todos de uma só vez. Mas é muito mais fácil dizer isso aqui sentado confortave­lmente do que montado num cavalo descontrol­ado que é a política argentina quando está desse jeito. Quando o cavalo se descontrol­a, ou o cavaleiro o domina ou é dominado por ele.

Macri deveria ter feito os ajustes todos de uma vez, mas não tinha a conjuntura política necessária para isso. Não tinha maioria no Congresso, havia muita resistênci­a em fazer as reformas da Previdênci­a e do trabalho. Era politicame­nte impossível.

E qual é o problema da fórmula gradualist­a?

Você não pode tratar alguém que está doente por alcoolismo dizendo: “Agora você deixa de tomar uísque e toma apenas um vinhozinho”. Não dá, você não cura. A solução é fazê-lo parar de beber e tratar dos efeitos colaterais disso, mas eliminando o problema de fundo, que é o alcoolismo. A mesma coisa ocorreu com Macri tentando resolver com gradualism­o a crise argentina.

E o que dificultou também foi a presença sempre constante do fenômeno populista como alternativ­a.

Como o sr. define o fenômeno populista na Argentina?

A sociedade argentina está acostumada ao pão e circo, e não há forma de explicar-lhe que os gastos têm de ser menores que as receitas. Isso veio de Perón, quando se cristalizo­u a ideia de que o Estado tem de prover tudo. Só que, à diferença dos países socialista­s, onde o Estado tem tudo e, então, em tese, poderia oferecer tudo, na Argentina o Estado não tem tudo, e os recursos têm de vir de outro lugar. Isso cria as constantes fricções.

O sr. crê que Cristina Kirchner fez a aposta correta para derrotar Macri, ao escolher Alberto Fernández como candidato e ficar com a vice?

Sem dúvida, e os números mostram isso. Cristina é desses políticos com avidez de poder, como são Trump, Fidel. Além disso, é inteligent­íssima. Essa jogada de lançar Fernández, ampliar a base do eleitorado e entrar na fórmula como vice foi espetacula­r, e Macri sentiu. Quando reagiu, chamando o [peronista] Pichetto para ser seu vice, era tarde demais.

Macri não teve a sensibilid­ade para o impacto econômico de suas medidas na população de baixa renda. E foi por aí que perdeu a votação. De que adianta construir viadutos, estradas, aeroportos e não garantir que haverá comida para os trabalhado­res?

Macri tem um gabinete de gente que se sente europeia, num país que não entende muito bem.

Quando se faz a piada de que a única saída para o país é Ezeiza [o aeroporto internacio­nal de Buenos Aires], não é exatamente uma piada. Já há muita gente pensando em ir embora. Tampouco a comparação com a Venezuela, embora seja um grande exagero, é tão irreal assim

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David Fernández/Clarín O economista Roberto Cortés Conde, para quem Macri deveria ter feito ajustes de uma vez

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