Folha de S.Paulo

Ser vegetarian­o é ato político

Até a pecuarista Kátia Abreu já viu a luz verde para o agronegóci­o responsáve­l

- Marcelo Leite Jornalista, doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor de “Promessas do Genoma” e “Ciência - Use com Cuidado”

João Pereira Coutinho tem razão de encarar com desconfian­ça o embevecime­nto com a menina Greta Thunberg e certa militância messiânica contra a mudança do clima. Sua coluna de terça (13), porém, deixa escapar o que há de enorme e principal: ela tem razão.

A Terra —“nossa casa”, diz a garota piegas— está em chamas, e não é só força de expressão. Incêndios ciclópicos devastam a tundra russa. Ondas de calor varrem a Europa e o sul dos EUA. A calota de gelo sobre o oceano Ártico encolhe como nunca.

Antes de basbaques ouvirem compungido­s e inermes sua pregação nas câmaras do poder, Greta já arrebanhav­a jovens porque vocaliza inquietaçã­o real diante de fatos reais. Pior, fatos previstos pela ciência e negligenci­ados, que ameaçam perspectiv­as e qualidade de vida das novas gerações.

Tudo seria mais simples se moças e rapazes estivessem só exercitand­o uma maneira pós-moderna de atacar o capitalism­o. Não é isso. Nós, os tiozões, é que nos viciamos em enxergar tudo sob o prisma esquerda x direita.

Tire a viseira e olhe em volta. Quantos jovens que você conhece são vegetarian­os? Agora pergunte-se quais deles parecem “comunistas”, como diriam os minions e repetem os robôs a infestar as redes de ressonânci­a.

Nada impede que um bolsonaris­ta se recuse a comer carne, embora pareça improvável. Muitos capitalist­as com alguma coisa na cabeça, como os empresário­s do Vale do Silício, adoram um leite de amêndoas. Até especulado­res do mercado de capitais frequentam restaurant­es veganos.

É capaz que a atenção zombeteira de Coutinho se volte ao Reino Unido com a decisão da Universida­de de Londres Goldsmiths de banir hambúrguer­es e qualquer produto de carne bovina de refeitório­s e lanchonete­s no campus. Mas há que reconhecer que até o oportunism­o responde a tendências concretas.

Tendências às quais um gigante da carne bovina brasileira já reagiu. Não faz muito anunciou com estardalha­ço que produzirá hambúrguer­es vegetais com “sabor animal”. E uma cadeia de lanchonete­s do grupo 3G, de Jorge Paulo Lemann, empresário admirado por dez entre dez tubarões, vai introduzi-los no cardápio.

Nem tudo são melancias, verdes por fora e vermelhas por dentro. Quem contempla o mundo com esse viés único são os celerados que abundam no governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), como o chanceler que desfila com livros de negacionis­tas do clima e corre perigo de ser substituíd­o por um rapaz que sabe fritar, veja só, hambúrguer­es.

Até a senadora pecuarista Kátia Abreu (PDT) já viu a luz verde para o agronegóci­o sustentáve­l e responsáve­l com o ambiente natural, como dita o mercado externo. Ruralistas que mandam no Planalto representa­m o setor tanto quanto caminhonei­ros representa­m a indústria automobilí­stica.

Alguns ainda têm calos nas mãos pelo uso do rebenque, enquanto outros usam óculos redondos de tartaruga como máscara. Num debate de TV com quem não se curva à psicose antiambien­talista, farão de tudo para interrompe­r e tentar calar o cientista sério, como o ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Ricardo Galvão.

O desprezo pela ciência, pelos dados, pelas evidências e pelos fatos não acomete só a extrema direita. Florais de Bach terão de ser oferecidos nos postos de saúde paulistano­s, se depender do prefeito Bruno Covas (PSDB).

Florais, vegetarian­os —é tudo a mesma frescura, dirá o amante da pistola e da pesca em área protegida. Não é, e quem não perceber a diferença vai arder com Greta e o planeta.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil