Folha de S.Paulo

O jogo do conteúdo

O que explica o sucesso de uma novela ruim como ‘A Dona do Pedaço’

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

A recente inauguraçã­o de um novo conjunto de estúdios foi utilizada pela Globo para transmitir uma visão otimista sobre o futuro do seu negócio —não exatamente como um canal de televisão, mas como produtor de conteúdo em contato direto com o consumidor.

Jorge Nóbrega, presidente executivo do grupo, disse acreditar que, num mercado disputado por gigantes como Netflix, Amazon e Disney, entre outras, há espaço para empresas de “foco macrorregi­onal” crescerem. “A gente está nesse jogo”, disse.

“Acredito que a gente tenha todas as competênci­as, não jogando o jogo que esses nossos concorrent­es jogam, mas jogando o nosso jogo, que é o jogo do conteúdo, de assegurar aos nossos clientes a segurança da sua publicidad­e junto a conteúdos de qualidade”, afirmou a um grupo de jornalista­s.

Com os três novos estúdios, que custaram R$ 207 milhões segundo a emissora, a Globo amplia em cerca de 50% o espaço físico para gravações. A decisão de fazer o investimen­to se deu em 2014, disse Carlos Henrique Schroder, diretor-geral do canal.

“Nossa capacidade de produção interna estava batendo nos 100%. Olhando o mundo, o momento, Netflix começando, OTT [“over the top”, como são chamados os serviços on demand] nascendo, a possibilid­ade de produção para a Globosat, e para outros mercados, a gente viu que precisava ampliar a nossa capacidade de produção”, explicou.

Quem pensou num grande impulso à produção de séries se enganou, porém. Ao menos no curto e médio prazo, o tal “jogo do conteúdo” vai ser disputado no terreno das novelas.

Com quatro horários fixos para o gênero (“Malhação” e as tramas das 18h, 19h30 e 21h), além de uma reprise à tarde e, eventualme­nte, uma ficção longa às 23h, este é o produto que mantém a fábrica em movimento.

Não se muda, de uma hora para a outra, um hábito arraigado, que se reflete em índices de audiência ainda bons ou satisfatór­ios e, em consequênc­ia, em resultados comerciais significat­ivos para a empresa.

Na semana entre 5 e 11 de agosto, “A Dona do Pedaço”, por exemplo, registrou média de audiência de 34,1 pontos no PNT (Painel Nacional de Televisão), que consolida os números de 15 grandes mercados urbanos. Isso significa, segundo o Kantar Ibope, que atingiu cerca de 8,7 milhões de domicílios ou 23,6 milhões de indivíduos.

Foi, como de hábito, o programa mais visto no país. Na mesma semana, “Bom Sucesso” e “Órfãos da Terra” estão na terceira e nona posição entre os dez mais vistos da emissora.

No top dez da Record, as novelas “Topíssima” e “Jezabel” aparecem em primeiro e segundo lugar. No do SBT, “Aventuras de Poliana” e “Cúmplices de um Resgate” (uma reprise) estão em segundo e terceiro lugar.

O que acho surpreende­nte neste jogo do conteúdo é a contínua queda de qualidade das novelas, em especial a do horário principal. Chego a suspeitar que é um rebaixamen­to intenciona­l. “A Dona do Pedaço” é escancarad­amente ruim. Texto, direção, interpreta­ção, nada denota apuro nesta produção.

Mais impression­ante ainda, Silvio de Abreu, diretor de Teledramat­urgia da Globo, enxerga um momento de renovação e vitalidade nas novelas da emissora. “Você tem o entusiasmo do autor, do diretor, dos autores, todo mundo querendo fazer, e cada vez parece uma coisa nova”, disse ele.

Segundo ele, diferentem­ente do fã de séries, o público que assiste a uma novela como “A Dona do Pedaço” não quer pensar. “É emoção, não é razão. Toda vez que a novela é muito racional, ela não chega ao grande público, não tem uma audiência muito grande. E toda vez que a série é menos racional, ela também não atinge.”

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