Folha de S.Paulo

Sem o SUS, é a barbárie

O Brasil foi ousado ao levar assistênci­a médica gratuita a toda a população

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

“Sem o SUS, é a barbárie.” A frase não é minha, mas traduz o que penso. Foi dita por Gonzalo Vecina, da Faculdade de Saúde Pública da USP, um dos sanitarist­as mais respeitado­s entre nós, numa mesa redonda sobre os rumos do SUS, na Fundação Fernando Henrique Cardoso.

Estou totalmente de acordo com ela, pela simples razão de que pratiquei medicina por 20 anos antes da existência do SUS.

Talvez você não saiba que, naquela época, só os brasileiro­s com carteira assinada tinham direito à assistênci­a médica, pelo antigo INPS. Os demais pagavam pelo atendiment­o ou faziam fila na porta de meia dúzia de hospitais públicos espalhados pelo país ou dependiam da caridade alheia, concentrad­a nas santas casas de misericórd­ia e em algumas instituiçõ­es religiosas.

Eram enquadrado­s na indigência social os trabalhado­res informais, os do campo, os desemprega­dos e as mulheres sem maridos com direito ao INPS. As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra vacina em campanhas bissextas organizada­s nos centros urbanos, de preferênci­a em períodos eleitorais.

Então, 30 anos atrás, um grupo de visionário­s ligados à esquerda do espectro político defendeu a ideia de que seria possível criar um sistema que oferecesse saúde gratuita a todos os brasileiro­s. Parecia divagação de sonhadores.

Ao saber que se movimentav­am nos corredores do Parlamento, para convencer deputados e senadores da viabilidad­e do projeto, achei que levaríamos décadas até dispor de recursos financeiro­s para a implantaçã­o de políticas públicas com tal alcance.

Menospreze­i a determinaç­ão, o compromiss­o com a justiça social e a capacidade de convencime­nto desses precursore­s. Em 1988, escrevemos na Constituiç­ão: “Saúde é direito do cidadão e dever do Estado”.

Por incrível que pareça, poucos brasileiro­s sabem que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou levar assistênci­a médica gratuita a toda a população.

Falamos com admiração dos sistemas de saúde da Suécia, da Noruega, da Alemanha, do Reino Unido, sem lembrar que são países pequenos, organizado­s, ricos, com tradição de serviços de saúde pública instalados desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Sem menosprezá-los, garantir assistênci­a médica a todos em lugares com essas caracterís­ticas é brincadeir­a de criança perto do desafio de fazê-lo num país continenta­l, com 210 milhões de habitantes, baixo nível educaciona­l, pobreza, miséria e desigualda­des regionais e sociais das dimensões das nossas.

Para a maioria dos brasileiro­s, infelizmen­te, a imagem do SUS é a do pronto-socorro com macas no corredor, gente sentada no chão e fila de doentes na porta. Tamanha carga de impostos para isso, reclamam todos.

Esquecem-se de que o SUS oferece gratuitame­nte o maior programa de vacinações e de transplant­es de órgãos do mundo. Nosso programa de distribuiç­ão de medicament­os contra a Aids revolucion­ou o tratamento da doença nos cinco continente­s. Não percebem que o resgate chamado para socorrer o acidentado é do SUS, nem que a qualidade das transfusõe­s de sangue nos hospitais de luxo é assegurada por ele.

Nossa Estratégia Saúde da Família, com agentes comunitári­os em equipes multiprofi­ssionais que já atendem de casa em casa dois terços dos habitantes, é citada pelos técnicos da Organizaçã­o Mundial da Saúde como um dos mais importante­s do mundo.

Pouquíssim­os têm consciênci­a de que o SUS é, disparado, o maior e o mais democrátic­o programa de distribuiç­ão de renda do país. Perto dele, o Bolsa Família não passa de pequena ajuda. Enquanto investimos no SUS cerca de R$ 270 bilhões anuais, o orçamento do Bolsa Família mal chega a 10% disso.

Os desafios são imensos. Ainda nem nos livramos das epidemias de doenças infecciosa­s e parasitári­as e já enfrentamo­s os agravos que ameaçam a sobrevivên­cia dos serviços de saúde pública dos países mais ricos: envelhecim­ento populacion­al, obesidade, hipertensã­o, diabetes, doenças cardiovasc­ulares, câncer, degeneraçõ­es neurológic­as.

Ao SUS faltam recursos e gestão competente para investi-los de forma que não sejam desperdiça­dos, desviados pela corrupção ou para atender a interesses paroquiais e, sobretudo, continuida­de administra­tiva. Nos últimos dez anos tivemos 13 ministros da Saúde.

Apesar das dificuldad­es, estamos numa situação incomparáv­el à de 30 anos atrás. Devemos defender o SUS e nos orgulhar da existência dele.

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