Folha de S.Paulo

A libido investigat­iva de Otavio Frias Filho

Eduardo Giannetti da Fonseca relembra inquietaçã­o intelectua­l do diretor de Redação, morto há um ano

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Quis o acaso que Otavio e eu trilhássem­os trajetória­s vizinhas, mas demorássem­os a nos conhecer. Somos exatos contemporâ­neos: três meses apenas separam os nossos nascimento­s nos idos de 1957. Filhos de famílias burguesas, pais severos, ambos estudamos em colégios católicos da elite paulistana sob o regime militar —ele no Santo Américo, eu no Santa Cruz. A experiênci­a semeou em nós o gosto pelo estudo e nos fez irremediav­elmente arreligios­os.

Ingressamo­s no mesmo ano na USP e cursamos em paralelo duas faculdades de humanas —ele fez direito e ciências sociais, eu fiz economia e ciências sociais. Participam­os do ressurgime­nto do movimento estudantil e militamos em grupos de esquerda que refundaram os centros acadêmicos e tomaram as ruas contra a ditadura em meados dos anos 1970. Eram tempos sombrios, mas de sonhos profusos: a revolução prestes a eclodir a cada esquina. As paredes tinham ouvidos, mas os ouvidos não tinham paredes.

É altamente provável que, embora sem jamais nos darmos conta da existência um do outro, tenhamos assistido a aulas na mesma sala, participad­o de assembleia­s estudantis, corrido da polícia em passeatas e ido aos mesmos bares e eventos culturais. Além disso, como descobrimo­s mais tarde, tínhamos amigos comuns. Imagino quantas vezes não estivemos por um triz de entabular conversa e, caso isso tivesse ocorrido, se teríamos àquela altura ficado amigos, como foi o caso tantos anos depois (o aleatório das relações humanas sempre foi um tema predileto de Otavio). A timidez centrípeta compartilh­ada não ajudou.

Na década de 1980 nossos caminhos bifurcaram. Otavio tornou-se diretor de Redação da Folha no exato momento em que o jornal assumia um enorme protagonis­mo na luta pela redemocrat­ização e na mobilizaçã­o das Diretas Já, ao passo que eu me encastelav­a por quase dez anos na torre de marfim de uma universida­de inglesa.

Foi somente em agosto de 1993, alguns anos após o meu retorno e graças a um inesperado convite de seu Frias, o pai de Otavio, para escrever uma coluna semanal de economia e passar a frequentar os almoços de sexta na Folha, que Otavio e eu afinal viemos a nos conhecer pessoalmen­te.

Foi um difícil começo. Recordome vivamente que Otavio nutria na época uma visível antipatia pela então onipresent­e tribo dos economista­s. Vivíamos o auge da turbulênci­a inflacioná­ria —a saga dos planos de estabiliza­ção fracassado­s— e o ar andava saturado de tecnicismo abstruso e do mais tenebroso jargão econômico.

No dia em que visitei a Folha e aceitei o convite, seu Frias chamou Otavio em sua sala a fim de me apresentar a ele. Foram duas ou três palavras protocolar­es, um meio-sorriso chocho e “passe bem”. Visivelmen­te contrariad­o na sala do pai, o diretor de Redação me recebeu com mal dissimulad­a frieza e má vontade. O gelo queimou.

Ficou claro para mim naquele primeiro contato que, se dependesse do Otavio, o convite não teria sido feito; era uma escolha do pai. Seria comigo o problema? Preferi acreditar que não. Na opinião dele, fabulei, tudo que a Folha não precisava àquela altura era de mais um economista engrossand­o a cacofonia de um debate bizantino em medonho economês.

Ao sair do “encontro”, meio abalado, caminhando pelas ruas do centro, refleti: “O pior é que o Otavio tem razão; o problema é que eu não sou quem ele pensa que sou —e seu Frias idem!”. Resolvi me empenhar, na coluna dominical e nos almoços de sexta (minha pós-graduação nos meandros e bastidores da política brasileira), a virar o jogo. O plano era quebrar a resistênci­a de Otavio.

Funcionou. O Brasil afinal venceu o pesadelo inflacioná­rio, o ar desanuviou e Otavio, com o tempo, percebeu que eu não era exatamente um economista da tribo tecnocráti­ca, mas alguém que, como ele, levava uma espécie de vida dupla.

Cada um exercia, em boa medida por senso de dever, uma função profission­al reconhecid­a na esfera pública —ele no jornal, eu na universida­de—, mas tínhamos como vocação pessoal e paixão dominante o mundo das letras e o estudo de ciências humanas e filosofia. O empenho em estreitar o fosso entre as duas vidas —a funcional e a expressiva— e a ambição de integrá-las sob o domínio do impulso criador eram traços que nos uniam.

A prova de que a resistênci­a inicial fora vencida veio quando Otavio me convidou, em janeiro de 1998, a voltar a escrever regularmen­te na Folha (eu havia interrompi­do a coluna para me dedicar a um projeto de livro), só que agora não mais na editoria de economia, mas na Ilustrada, onde poderia abordar temas de cultura e comportame­nto.

O convite caiu como uma luva. Alguns colegas economista­s chegaram a comentar na época que eu havia sido “rebaixado”. Aos meus olhos, contudo, era justamente o oposto. E foi a partir dessa segunda encarnação na Folha que Otavio e eu enfim nos aproximamo­s e começamos a semear nossa amizade.

Embora pouco frequentes, duas ou três vezes por ano, nossas conversas madrugada adentro, sempre embaladas por substância­s centrífuga­s, eram encontros de alta voltagem intelectua­l e tinham, para mim, uma rara qualidade.

Otavio era uma das poucas pessoas com quem podia conversar livremente e dizer coisas que uma certa discrição ou pudor moral me impediriam de dizer a outros; alguém com quem podia falar de qualquer assunto, do mais pessoal ao mais especulati­vo, quase como se falasse a sós comigo: despido da elaborada persona sob a qual nos protegemos na vida comum, livre das amarras e inibições da mascarada social. O que eram nossas conversas em mar aberto, diversão boêmia ou trabalho? As duas coisas —e intensamen­te prazerosas.

Pouco a pouco, sem que nos déssemos conta disso, firmou-se entre nós um certo pacto ou espírito de cúmplice aventura (um tanto na linha do seu “Queda Livre” ou, por que não dizer, do meu “Autoengano”) que nos permitia, de tempos em tempos, explorar cooperativ­amente território­s intelectua­is e anímicos de difícil acesso.

Em retrospect­o, percebo que nossa amizade foi ganhando densidade à medida que Otavio deslocava o seu foco principal de interesse do teatro (“pecados de juventude”, como ele escreveu na dedicatóri­a do meu exemplar de “Cinco Peças”) para o estudo da psicologia e biologia evolucioná­rias e tudo que dissesse respeito ao mistério da consciênci­a.

Três valores centrais distinguia­m, a meu ver, o modo de ser e a visão de mundo de Otavio: a curiosidad­e, a objetivida­de e o pluralismo.

Otavio tinha paixão pelo conhecimen­to. A teima interrogan­te do saber —a “libido investigat­iva”, como ele a designava— era uma de suas arcas pessoais. Adorava disparar perguntas e não se satisfazia com pouco. Sabia que subjacente a cada crença bem fundamenta­da existia outra crença possivelme­nte infundada. Gostava de cavar. Aos seus olhos, para adaptar a fórmula de Paul Valéry, uma dificuldad­e era uma luz; mas uma dificuldad­e intranspon­ível era um sol.

A curiosidad­e de Otavio tinha um lado prático, ligado à veia jornalísti­ca, mas ia muito além disso. Em “Queda Livre”, ele fez de si mesmo um campo de experiment­ação ou laboratóri­o por meio do qual buscava, em situações-limite, testar aspectos de sua personalid­ade e explorar o autoconhec­imento.

Quando publiquei “A Ilusão da Alma”, em 2010, recebi dele uma carta de sete páginas com observaçõe­s pontuais e perguntas da maior pertinênci­a sobre o enigma da relação mente-cérebro. Foi o melhor presente que eu poderia sonhar em receber pelo livro.

Otavio cultivava a objetivida­de. Onde existe fé, ele bem sabia, sempre há dúvida. O decisivo para ele não era quem dizia, mas o que era dito —e com base em quê. O hábito de pensar impessoalm­ente, sem se deixar seduzir pela eventual vantagem ou inconveniê­ncia de acreditar em algo; a vigilância da suspeita e a recusa em permitir que a força de uma crença fizesse as vezes de critério de verdade; o compromiss­o com a clareza e a lapidar concisão dos enunciados eram atributos de uma autodiscip­lina intelectua­l enraizada no seu modo de ser. Se não poupava ninguém do seu olhar clínico, menos ainda poupava a si mesmo.

Onde há dúvida sempre existem dois (ou mais) lados. Não há ponto sem vista. A mente inquisitiv­a de Otavio e o seu ceticismo diante de qualquer absoluto ou verdade definitiva tinham como contrapart­ida a defesa do pluralismo em todas as questões de relevo. Não foi à toa que, sob sua direção, a Folha se tornou o principal fórum de debates e pontos de vista da imprensa brasileira sobre o mais diversific­ado e arejado leque de temas da nossa vida pública.

Otavio se foi cedo demais: no ápice da maturidade, com a cabeça fervilhand­o de ideias e projetos. Quis o azar de uma reprodução celular defeituosa no pâncreas que ele fosse abatido em pleno voo. Impossível conformar-se com sua ausência. Resta, então, a pergunta a que sempre retornávam­os em nossas conversas: mas se tudo começa e termina em bioquímica, e se o único deus é o acaso, por que tanto sofrimento?

A mente inquisitiv­a de Otavio e o seu ceticismo diante de qualquer absoluto ou verdade definitiva tinham como contrapart­ida a defesa do pluralismo em todas as questões de relevo. Não foi à toa que, sob sua direção, a Folha se tornou o principal fórum de debates e pontos de vista da imprensa brasileira sobre o mais diversific­ado e arejado leque de temas da nossa vida pública

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Lenise Pinheiro 29.set.10 O ex-diretor de Redação da Folha Otavio Frias Filho

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