Folha de S.Paulo

A fazenda lírica de Manoel de Barros

Trinta anos depois do lançamento de ‘O Guardador de Águas’, uma visita ao retiro no Pantanal onde o poeta viveu

- Por Fernando Granato Jornalista e escritor, é autor de “O Negro da Chibata” (Objetiva) e “Nas Trilhas de Quixote” (Record) Ilustração Nelson Naccache Artista plástico

Corumbá, cidade do Mato Grosso do Sul, é maior que muitos países. Ganha em extensão, por exemplo, de Suíça, Eslovênia e Estônia. Com área de 64,7 mil km², é considerad­a a porta do Pantanal. Pela presença do rio Paraguai, que corta o município, os homens de lá são mais relativos a águas do que a terras, como dizia um dos mais importante­s poetas brasileiro­s, Manoel de Barros (1916-2014).

Nascido em Cuiabá, capital do Mato Grosso, o poeta viveu grande parte da sua vida em Corumbá —e foi ali, no Pantanal, que germinou sua obra. Aos dois anos, mudou-se com a família para a região e passou a infância se banhando em rio e convivendo com passarinho­s.

Depois de ter morado em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, e no Rio de Janeiro, onde cursou direito, herdou do pai em 1949, aos 33 anos, uma área de 14 mil hectares em pleno Pantanal, na zona rural de Corumbá. Lá implantou a Fazenda Santa Cruz.

Quando recebeu as terras, o poeta pensou em vendê-las para montar uma pequena editora no Rio de Janeiro. No dia da venda, entretanto, sua mulher, Stella, negou-se a assinar os papéis. Essa resistênci­a transformo­u a vida de Manoel de Barros.

O casal decidiu se mudar para o Pantanal e enfrentar as agruras da vida rural. O poeta construiu a casa com placas de fibra de eucalipto compensado, cercou a área, instalou currais e trouxe gado. Nesse período, nas andanças pela terra virgem, encontrou junto a uma árvore uma espada e um bacamarte utilizados por um ex-combatente da Guerra do Paraguai (1864-1870), que se propagou por aquela região.

As histórias sobre esse conflito sangrento permearam a vida do escritor e a de grande parte dos moradores do Mato Grosso do Sul. Desde Corumbá, seguindo pelo rio Paraguai no sentido de sua foz, os relatos da guerra permanecem vivos. Estima-se que entre 50 mil e 60 mil brasileiro­s tenham morrido na disputa; no lado paraguaio, as mortes passaram de 300 mil.

Nas terras que haviam sido palco da batalha, Manoel de Barros passou dez anos com a mulher no mais completo isolamento. Não havia rádio, televisão nem vizinhança. Os dias eram preenchido­s no trato com o rebanho —costumava sair a cavalo para salgar os cochos e curar os bezerros de feridas causadas por parasitas. Embora o poeta costumasse dizer que não havia escrito um só verso nesse período, a experiênci­a serviu para amadurecer sua poesia e dar um rumo a sua obra.

Não que Manoel de Barros tenha sido um “poeta do Pantanal”, como muita gente passou a chamá-lo. Mas tudo aquilo que lá encontrou —seus rios, seus bichos, sua história e sua gente— está impregnado no que passou a escrever.

Em uma entrevista ao documentár­io “Só Dez por Cento É Mentira”, de 2008, ele próprio explicou: “Minha poesia é fertilizad­a pelo sol, pelas águas do Pantanal. Mas não serve para descrever paisagens. Poesia não é um fenômeno de paisagens. É um fenômeno de linguagem. Poeta é um sujeito que inventa, e eu invento o meu Pantanal”.

No ano em que se comemoram três décadas do lançamento de “O Guardador de Águas” (1989), livro em que mais exercita essa técnica de inventar seu próprio Pantanal, uma visita à Fazenda Santa Cruz possibilit­a um melhor entendimen­to da maneira como Manoel de Barros subvertia a realidade para transformá­la em matéria-prima de sua poesia.

Apesar de pertencer ao município de Corumbá, a fazenda fica mais próxima da cidade de Rio Verde de Mato Grosso (MS). De lá sai uma estradinha de terra, com dezenas de porteiras pelo caminho, que levam até Santa Cruz. O percurso dura três horas.

No trajeto avista-se ao longe a serra de Maracaju, com suas gargantas imponentes. Quanto mais se avança pelo tortuoso caminho, a vegetação vai ganhando feição daquilo que caracteriz­a o Pantanal: carandás, cambarás e uma infinidade de plantas aquáticas nas vazantes e corixos (pequenos rios). Deixa-se pra trás o cerrado para penetrar num mundo das águas.

A propriedad­e dos Barros fica em plena Nhecolândi­a, como é chamada essa parte do Pantanal, com uma área de 23,5 mil km² onde predominam baías, salinas, campos limpos, bosques e savanas. Com o solo arenoso do Pantanal e o pasto de poucos nutrientes, a Fazenda Santa Cruz é mais adequada à chamada pecuária de cria, não a de engorda. Os bezerros, quando desmamam e alcançam certo peso, já são vendidos para crescer em outras paragens.

Do chamado universo poético manoelino, permanece na fazenda, por exemplo, o pequeno quarto de madeira em que morava Bernardo, funcionári­o que de fato existiu e se transformo­u numa espécie de alter ego do autor nas páginas de seus livros.

“Esse é Bernardo”, escreveu o poeta no início de “O Guardador de Águas”: “Bernardo da Mata. Apresento./ Ele faz encurtamen­to de águas./ Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros/ Até que as águas se ajoelhem/ Do tamanho de uma lagarta nos vidros”. Em outro poema, Manoel dá contornos sobrenatur­ais a seu personagem: “Bernardo é quase árvore./ Silêncio dele é tão alto que os passarinho­s ouvem de longe/ E vêm pousar em seu ombro”.

Bernardo era uma figura folclórica, como lembra o neto do poeta, também chamado Manoel, 36, que largou a vida da cidade grande e hoje administra sozinho a fazenda. “Ele não falava, apenas imitava o apito de um navio”, conta. “Isso porque tinha trabalhado no vapor Fernandes Vieira, no rio Paraguai, como abastecedo­r de lenha. Era o único som que conseguia fazer.”

Manoelzinh­o, como é conhecido, ainda era pequeno quando Bernardo morreu, mas guarda na memória as histórias envolvendo o personagem preferido de seu avô. “Lembro que as pessoas pediam para ele imitar o apito do navio e ele só fazia o barulho em troca de um copo de pinga, que virava inteiro goela abaixo sem derramar uma lágrima.”

AFazenda Santa Cruz fica totalmente ilhada nos meses de verão, quando as águas enchem o Pantanal. Nesse período, só é possível chegar ali de barco ou avião. Num desses deslocamen­tos aéreos, em 2007, Manoel de Barros perdeu um de seus filhos, João, pai de Manoelzinh­o. O pequeno avião que o transporta­va se chocou com uma vaca na pista durante o pouso.

Por estar localizada no meio do Pantanal, distante das cidades, a fazenda sempre foi ponto de parada de comitivas que atravessam longas distâncias com boiadas. Manoelzinh­o, como o avô, recebe os visitantes de braços abertos, oferecendo quarto e comida. Conta que uma das atividades prediletas do poeta era ouvir as histórias dos pantaneiro­s. “Ele, como eu, enxergava muita sabedoria nessa gente nativa”, diz.

As conversas muitas vezes viravam versos. “No conduzir do gado, que é tarefa monótona, de horas inteiras, às vezes de dias inteiros —é no uso de cantos e recontos que o pantaneiro encontra o seu ser”, escreveu Manoel de Barros. “Na troca de prosa ou de montada, ele sonha por cima das cercas. É mesmo um trabalho de larga, onde o pantaneiro pode inventar, transcende­r, desorbitar pela imaginação.”

As histórias corriam e ainda correm soltas no alpendre da sede da fazenda, que permanece a mesma do tempo do poeta, com algumas pequenas reformas. Dali se avista o pôr do sol e, ao anoitecer, morcegos sobrevoam o lugar em voos rasantes.

Quando o dia amanhece, a anhuma, ave típica da região, provoca estardalha­ço com sua gritaria. Segundo Manoelzinh­o, ela é considerad­a a “sentinela do Pantanal”, pois avisa os outros bichos da presença de estranhos. “Meu avô dizia que ela gritava: ‘lá vem ele, lá vem ele’”.

Outra recordação de Manoelzinh­o se refere ao local predileto de seu avô na fazenda. “Ele adorava ficar sentado na beira de um corixo que passa dentro da Santa Cruz”, conta. “Ficava ali horas e horas, vendo os pássaros. Gostava do martim-pescador, que mergulha para pegar o peixe e se alimenta dele.”

Depois da contemplaç­ão, o poeta transforma­va o visto e o sentido em poesia. “Ilhota de pedra no meio de um corixo é de nome sarã./ Amanhecer de um sarã tem gala. Eu assisto: / martim-pescador, de repente, no alto da água, arregaça / o cuzinho e solta sua isca de guspe. / Peixe vai ver o que foi aquele guspe: antepara! / De veloz arrojo martim-pescador frecha na água, e / num átimo sobe— /o peixe atravessad­o no bico. / As águas remansam e rezam. / Que esse martim-pescador é fela.”

Na visão de Marcelo Marinho, professor de literatura comparada da Unila (Universida­de Federal da Integração Latino-Americana) e um dos maiores especialis­tas na obra de Manoel de Barros, o poeta propunha novos recortes da paisagem do Pantanal, no sentido oposto ao das imagens folcloriza­das que se divulgam dali: “O que Manoel queria era nos fazer ver novas paisagens, com novas dimensões, daquele lugar”.

A estratégia deu certo. Apesar de ter alcançado tarde o reconhecim­ento literário, Manoel de Barros passou a figurar na lista dos autores mais vendidos do país no final dos anos 1990 —o que, para um poeta, é sempre muito raro. Alguns de seus títulos bateram a casa dos 400 mil exemplares vendidos. Antes dele, apenas Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) havia atingido tal proeza.

A obsessão de Manoel em evitar o exotismo e a folcloriza­ção do Pantanal era tanta que, em 1952, ele serviu como uma espécie de guia às avessas para o escritor João Guimarães Rosa, que lá esteve para colher subsídios a um conto que pretendia escrever sobre a alma dos bois e boiadeiros.

Em entrevista à revista Bric-à-Brac, nos anos 1980, Manoel lembrou seu encontro com Rosa: “Dei a entender que se estava olhando o Pantanal só como uma coisa exótica. Um superficia­l para só se ver e bater chapa. Mesmo os que cantavam em prosa e verso ficavam enumerando bichos, carandás, aves, jacarés, seriemas: e que essa enumeração não transmite a essência do Pantanal, porém só sua aparência. ‘Precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com a sua estética, com sua linguagem calibrada, os excessos de natural’. Rosa fez tudo isso. Alguns anos depois deu a público o seu [conto] ‘Com o Vaqueiro Mariano’, intenso de poesia e transfigur­ação”.

Manoel estava calejado pela infinidade de narrações simplórias de escritores sobre a região. Mesmo viajantes experiment­ados, como o antropólog­o Claude Lévi-Strauss, que lá esteve em 1935, não conseguira­m escapar do mero relato descritivo. “Tão logo se passa Aquidauana, entra-se no Pantanal: o maior pântano do mundo, que ocupa a bacia média do rio Paraguai”, escreveu ele no clássico “Tristes Trópicos”.

“Em terra, o Pantanal torna-se uma paisagem de sonho, onde as manadas de zebus se refugiam como em arcas flutuantes no alto das elevações, enquanto isso, nos charcos submersos, os bandos de grandes pássaros, flamingos, garças, garças-reais, formam ilhas compactas, brancas e cor de rosa, ainda menos plumosas do que as copas em leque das palmeiras carandás que destilam em suas folhas uma cera preciosa, e cujos bosques espaçados são os únicos a quebrar a perspectiv­a falsamente risonha desse deserto aquático.”

O próprio Manoel de Barros, em algumas ocasiões, não escapou do relato convencion­al daquela região. Em seu “Livro de Pré-Coisas”, de 1985, ele propõe um “roteiro para uma excursão poética no Pantanal”, mas apresenta apenas trechos descritivo­s, sem fazer da realidade matéria poética.

“Corumbá estava amanhecend­o. / Nenhum galo se arriscara ainda. / Ia o silêncio pelas ruas carregando um bêbado. / Os ventos se escoravam nas andorinhas. / Aqui é o Portão de Entrada para o Pantanal. / Estamos por cima de uma pedra branca enorme que / o rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe.”

Nas páginas desse livro, ele se preocupa em fornecer subsídios para a compreensã­o exata daquele lugar peculiar. “As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontec­em.”

Mas nada de onças, jacarés, tuiuiús —os chamados fetiches do Pantanal que atraem, todos os anos, milhares de pessoas do mundo inteiro. Todo turista que ali desembarca espera deparar-se com algum desses símbolos pantaneiro­s. Tanto é assim que alguns hotéis e resorts se especializ­aram nas chamadas “focagens” desses animais —atividade noturna na qual monitores apontam lanternas potentes para os bicos, para que os turistas possam vê-los.

Felizmente, muitos hotéis também conduzem políticas que garantem a sobrevivên­cia de espécies em risco de extinção. A Fazenda San Francisco, em Miranda (MS), por exemplo, desenvolve desde 2002 um trabalho de preservaçã­o da onça-pintada. Pode se orgulhar de ser hoje o paraíso desse felino em todo o Pantanal.

Com a caça proibida há mais de 20 anos, o manejo correto do gado e a implantaçã­o de uma lavoura de arroz —que cria um brejo para o jacaré e a capivara (presas preferidas da onça)—, a pintada voltou a frequentar aquelas terras e pode ser vista com frequência pelos turistas que visitam a pousada instalada dentro da propriedad­e.

De acordo com o biólogo Henrique Villas Boas, que cuida do projeto dentro da San Francisco, a expectativ­a é que hoje existam sete onças a cada 100 km² da propriedad­e, o que dá uma estimativa de 11 felinos dessa espécie dentro da fazenda. Seja num passeio de chalana (grande embarcação com fundo plano) ou num caminhão tipo safári, os turistas têm a oportunida­de de avistar pintadas a uma distância segura.

Nas manhãs ensolarada­s de inverno, são comuns as aparições da onça tomando sol, estirada, nas margens de um corixo dentro da fazenda. Em silêncio, os turistas fotografam o bicho e levam as imagens para a cidade grande como um troféu, na proporção inversa do desregrame­nto do natural que propunha Manoel de Barros.

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Ilustração Nelson Naccache
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