Folha de S.Paulo

A arte de tocar teatro

‘Como podia o general romano Paulo Autran ser esse senhor delicado e tranquilo?’

- Depoimento a Walter Porto A obra que marcou Paulo Miklos Ator, cantor e compositor; faz curta temporada de ‘Chet Baker, Apenas um Sopro’ no Teatro Faap (SP) de 22 a 25/8

Só hoje, relembrand­o uma história da minha adolescênc­ia, tenho a dimensão da importânci­a que ela teve.

Eu morava no mesmo edifício que a irmã do Paulo Autran, Eny, e era amigo de infância do filho dela, Marcos Maurício. Quando tínhamos uns 14 anos, ela o chamou dizendo que o tio o tinha convidado para ver a sua peça que estava em cartaz. E falou que ele podia levar um amiguinho.

Isso era 1972. Ele me levou então para ver “O Homem de la Mancha”, uma peça que tinha no elenco também Bibi Ferreira e Grande Otelo. E dois anos depois, de novo, fomos ao Municipal assistir ao Paulo em “Coriolano”, de Shakespear­e.

Nós dois estávamos nas primeiras cadeiras da primeira fila. Foi tão emocionant­e ver o Paulo fazer aquele general romano, com aquela empáfia e vigor que ele tinha; me causou uma impressão enorme.

A mãe do Marcos, depois dessa segunda peça, nos mandou ir à casa do tio Paulo para agradecer pelo convite. Fomos até o apartament­o dele na avenida Nove de Julho, em São Paulo, e quando a porta da casa se abre, lá está Paulo Autran com um robe, de chinelinho, pedindo para a gente entrar. Um senhorzinh­o.

Fiquei muito impression­ado. Eu me perguntava como podia aquele general romano, com aquela voz e aquele poder todo, ser esse senhor delicado e tranquilo sentado na poltrona, querendo saber o que nós tínhamos achado da peça.

Eu não entendia como era possível essa transforma­ção. Lembro essa história depois de todo esse tempo porque estreei no teatro —tenho rodado com a peça “Chet Baker, Apenas um Sopro” pelo Brasil— e enfim tenho a real dimensão do que esse encontro significou na minha juventude.

Pude ver o patrono do teatro brasileiro, o senhor dos palcos, em cena em duas grandes montagens e perceber a mutação pela qual ele passava. Foi uma daquelas experiênci­as tão importante­s que você vai colhendo ao longo da sua existência.

Sem dúvida é mesmo uma transforma­ção que acontece quando estamos atuando; a magia da coisa está ligada a isso. Notei isso quando interprete­i Adoniran Barbosa em um filme e agora de novo com Chet Baker no teatro. Não sei exatamente como isso se passa, é algo que estamos sempre aprendendo.

Hoje faço um pouco de tudo simultanea­mente. Estou filmando “Jesus Kid”, filme do Aly Muritiba baseado num livro do Lourenço Mutarelli, outro multiartis­ta. Também vou estrear no Festival de Gramado como protagonis­ta em “O Homem Cordial”, do Iberê Carvalho. Neste domingo (18), faço um show aberto na Paulista do meu último disco, “A Gente Mora no Agora”. Fiz televisão no programa X Factor Brasil e na novela “O Sétimo Guardião”. Ou seja, é um momento de tudo ao mesmo tempo agora.

Vejo mais semelhança­s que diferenças entre subir num palco para atuar e para cantar. Apesar de ser compositor e músico, eu me enxergo principalm­ente como um intérprete. Existe uma linha que vai da música direto ao teatro. Quando as pessoas me perguntam se na peça eu toco músicas do Chet Baker, eu digo: “Não, eu toco teatro”. O personagem é a canção e nós somos o instrument­o.

Naquela época da minha adolescênc­ia, nos anos 1970, eu acompanhav­a bastante teatro. Vi o surgimento de alguns dos principais grupos de São Paulo, como o Pod Minoga e o Asdrúbal Trouxe o Trombone. Era um tempo interessan­te, de peças bacanas que falavam com o público jovem.

Mas eu também era muito antenado no rock ‘n’ roll e na música brasileira. Naquele ano em que conheci Paulo Autran, estava acontecend­o uma revolução musical, com discos incríveis sendo lançados, de Led Zeppelin e Black Sabbath a Jards Macalé e Caetano Veloso —que tinha acabado de fazer “Transa” (1972). Havia uma carga muito forte de novidade.

Logo comecei a aprender a tocar violão e outros instrument­os, definindo que seguiria com essa minha paixão. E fui me aproximand­o de um grupo de músicos do meu colégio —que depois viriam a formar comigo os Titãs. Mas quem sabe, se meus amigos fossem uma espécie de Asdrúbal, eu tivesse feito teatro.

 ?? Última Hora ?? Paulo Autran em cena de ‘O Homem de la Mancha’ (1972)
Última Hora Paulo Autran em cena de ‘O Homem de la Mancha’ (1972)

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