Folha de S.Paulo

Ouro de tolo

Guedes, Tarcísio e Tereza Cristina seriam pepitas em meio ao cascalho bolsonaris­ta

- Angela Alonso Professora de sociologia da USP e pesquisado­ra sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to

O presidente fala para chocar e distrair. Jair repete Fernando (Collor), com motos, jet-skis e escatologi­as.

Para muitos, essa vitrine obscuranti­sta acha contrapont­o no fundo liberal da loja. A despeito das presidenci­adas cotidianas, lá estão Paulo, Tarcísio e Tereza Cristina a embalar a esperança do mercado na melhora do ambiente de negócios. Seriam o ouro escondido em meio ao cascalho. Cascalhada precificad­a.

Como sabe Bolsonaro, que já garimpou, peneira-se muito para achar pepita. A jazida da pujança deveria luzir aos cem dias de governo, mas impôs reentrânci­as políticas e jurídicas incontorná­veis mesmo para o gênio de Chicago. Guedes pede paciência, mas não pede água. É movido pela crença no triunfo da vontade —a sua.

Acontece que o brilho da pepita e a opacidade do cascalho se amalgamam no mesmo riacho. Não são as cabeças de Janus, uma olhando o passado e a outra, o futuro. São serpentes da mesma Medusa, como mostra a tópica das universida­des públicas.

A turma do cascalho ataca ciência, pesquisa, liberdade de pensamento. Na retórica obscuranti­sta, crença vale mais que argumento, fé mais que demonstraç­ão. Seu dogma é o da verdade revelada. Como pensam assim, supõem que os demais também assim pensem.

Daí julgarem a universida­de um celeiro de esquerdist­as que passariam, como os bolsonaris­tas, o dia todo produzindo fake news e incitando estudantes a repeti-las.

Creem nisso porque, decerto, nunca usufruíram do ambiente intelectua­l de uma universida­de. Nesta instituiçã­o convivem diferentes credos, valores e opções políticas. A convergênc­ia está no engajament­o na produção e transmissã­o intergerac­ional de conhecimen­to.

A universida­de é o contrário de tudo o que diz a turma do cascalho. É espaço de pluralidad­e de disciplina­s, teorias, argumentos e métodos. Não se rege por ideologia unificador­a, mas por ethos comum, a adesão aos pilares da produção do conhecimen­to científico: o raciocínio lógico, o rigor dos métodos, a apresentaç­ão de provas e a legitimaçã­o intersubje­tiva dos resultados.

Tudo isso dá trabalho e leva tempo. Pesquisado­res estão em processo de atualizaçã­o permanente, nunca param de estudar. E estão sob constante avaliação.

Cada artigo submetido a um periódico, cada projeto de pesquisa enviado a uma agência de fomento, cada passo na carreira universitá­ria, tudo está sob escrutínio. Ninguém de fora precisa fazê-lo, a comunidade acadêmica controla-se a si mesma. É assim aqui e em todos os sistemas universitá­rios de respeito do mundo.

A turma da pepita o sabe. Reconhece a racionalid­ade econômica, brandindo planilhas e gráficos. Ampara-se na ciência e se beneficia do investimen­to público nela. De 1974 a 1978, Guedes estudou na caríssima Universida­de de Chicago com a mesma bolsa do CNPq que o governo agora nega a novos pesquisado­res. Sua turma acha que ascendeu por mérito, sem reconhecer a catapulta dos incentivos estatais à educação e à pesquisa.

Por isso não mexe uma palha pela ciência. Delegou o assunto à turma do cascalho, com seu ataque, este sim ideológico, à autonomia universitá­ria.

Nenhuma das turmas está nem aí para a universida­de pública. Compartilh­am o diagnóstic­o nunca fundamenta­do de que ensino superior público não funciona. E direcionam recursos e filhos para instituiçõ­es privadas.

Magnatas brasileiro­s doam para universida­des americanas, caso de Jorge Paulo Lemann, em vez de investir nas nacionais. Boa parte de nossa elite social retirou apoio à ideia da universida­de pública acessível pelo mérito, independen­temente de renda, cor ou credo.

Pepitas e cascalhos convergem numa operação de asfixia. Um lado amordaça, com desrespeit­o à lista tríplice para reitor e perseguiçã­o funcional e legal a dirigentes ou exdirigent­es de universida­des e institutos de pesquisa. O outro sangra, secando os cofres.

O corte de verbas para custeio, pesquisa e bolsas porá a perder esforços cumulativo­s dos governos FHC, Lula e Dilma na consolidaç­ão, democratiz­ação e internacio­nalização da ciência brasileira. Em país sério, educação e ciência são prioridade­s do Estado. Mesmo na pátria do liberalism­o, os Estados Unidos, as universida­des não sobrevivem sem a mãozinha pública. Aqui, o governo nos passa o pé.

A turma da pepita está pagando caro a turma do cascalho, que inviabiliz­ará não só a universida­de, mas os negócios, com sua verve antiambien­talista e anti-humanista.

A crer no presidente, no fundo não há um poço, mas uma fossa sanitária. Quem nela busca pepitas acabará com a peneira cheia de ouro de tolo.

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