Folha de S.Paulo

Nós e os felinos

Pesquisado­ra afirma que a história judaica é indissociá­vel da promoção dos direitos humanos, o que torna ainda mais relevante, no Brasil de hoje, que judeus explicitem seu compromiss­o com a democracia e a defesa das minorias

- Por Heloisa Pait Professora de sociologia da Unesp, estuda meios de comunicaçã­o e democracia e é editora da revista Pasmas

É impossível separar a história judaica dos direitos humanos. É em torno das tábuas da lei —não matarás!— que o povo judeu consegue, mais que atravessar um deserto em busca de uma terra prometida, livrar-se da mentalidad­e servil e tornar-se autônomo.

A Bíblia expande e elabora direitos em suas narrativas e ordenações: interdita-se o filicídio, estipulam-se penas para o estupro, estende-se o dia de descanso para mulheres e servos. O Talmud, escrito entre os séculos 3º e 5º, instituiu todo um corpo de obrigações familiares e coletivas com relação à infância e aos pobres, estando o direito à educação e a uma vida digna regulament­ados há quase dois milênios.

O Talmud foi construído a partir de interpreta­ções de um texto sagrado que lhe serviu de referência e de argumentaç­ões exaustivas e organizada­s institucio­nalmente. Ele foi, por sua vez, base de novos esforços interpreta­tivos que formaram o conjunto das regras de comportame­nto, a chamada Halacha, seguidas, ao seu modo, por judeus laicos e religiosos.

Ao longo de um larguíssim­o período de tempo, tradições éticas outras foram incorporad­as aos estudos talmúdicos e vice-versa, num zigue-zague que cabe aos eruditos mapear. Dentro da própria tradição judaica, de forte caráter mundano, o esforço interpreta­tivo ressaltou alguns aspectos da lei e relegou outros ao segundo plano, conforme as circunstân­cias sociais o exigiam.

Foi natural, portanto, que na era moderna os judeus se envolvesse­m com a luta pelos direitos humanos, individual e coletivame­nte, fazendo uso de novas oportunida­des oferecidas por sociedades em transforma­ção.

Escreveram obras filosófica­s e literárias —como o sintético “Diante da Lei”, do escritor tcheco de língua alemã Franz Kafka— que podem ser vistas como continuaçã­o de uma grande obra legal erigida na busca de uma sociedade justa.

Muitos se envolveram diretament­e com o direito em suas várias formas, como o americano Louis Brandeis, que já era um árduo defensor da justiça social quando foi nomeado juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos. O jurista francês René Cassin foi o principal autor da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948, pelo que recebeu o prêmio Nobel da Paz.

Alguns meses antes disso, a Declaração de Estabeleci­mento do Estado de Israel afirmava que esse “será baseado na liberdade, justiça e paz como imaginado pelos profetas de Israel; garantirá liberdade de religião, consciênci­a, língua, educação e cultura; [e] respeitará os lugares sagrados de todas as religiões (...).” Em 1974, organizaçõ­es americanas e canadenses adotaram a Declaração sobre Judaísmo e Direitos Humanos na cidade de Montreal.

Enquanto povo, os judeus puderam oferecer suas contribuiç­ões às sociedades em que governante­s adotaram normas perenes e tolerantes. De modo contrário, tiveram que fugir ou abrir mão de seus valores onde imperava o poder arbitrário, inclusive em países da América Latina.

No Brasil republican­o, os judeus puderam viver, manter e renovar suas tradições milenares, participan­do ativamente da construção da economia, cultura e instituiçõ­es nacionais, ainda que sofrendo, como outros brasileiro­s comprometi­dos com a livre expressão e a democracia, restrições por censura e perseguiçõ­es em períodos autoritári­os.

Nesse momento de quebra de consenso dos valores liberais e democrátic­os no mundo todo, os judeus brasileiro­s têm a oportunida­de de resgatar seu compromiss­o histórico com a lei e a proteção dos direitos inalienáve­is dos seres humanos, em particular a vida e a liberdade, mas também o direito a uma vida digna em um meio ambiente sustentáve­l, que acolha e nutra as futuras gerações.

Por experiênci­a própria ou por meio de narrativas de seus antepassad­os, os judeus conhecem intimament­e o efeito corrosivo do preconceit­o e da exclusão. Sabem que a democracia e a proteção às minorias, quaisquer que sejam, são elementos indissolúv­eis da paz entre os povos.

Individual­mente e em suas organizaçõ­es representa­tivas, muitos judeus certamente se somarão aos esforços de várias entidades nacionais também preocupada­s com a atual legitimaçã­o de discursos excludente­s e antidemocr­áticos em nosso país.

A sociedade civil brasileira é ativa e pujante, tendo encaminhad­o o país na rota democrátic­a mais de uma vez. Assim como nos anos 1970, quando a oposição democrátic­a, pacífica e pública contra o arbítrio galvanizou a sociedade civil em busca de uma saída do autoritari­smo, é preciso hoje costurar o tecido social esgarçado pela luta política dos últimos anos, em especial travada nos novos meios de comunicaçã­o.

A defesa dos direitos humanos pode resgatar o que temos de melhor na sociedade e unir brasileiro­s com distintos credos e visões políticas. Além disso, é importante que as vozes democrátic­as e liberais se façam ouvir no exterior, transforma­ndo perplexida­de em esperança.

Os judeus brasileiro­s podem honrar seus ilustres antepassad­os com a atenção aos direitos humanos em geral e em especial ao que lhe toca como povo: a proteção da liberdade de expressão cultural e religiosa; o reconhecim­ento público da pluralidad­e brasileira de expressões culturais e religiosas; e a distinção entre valores cívicos, pertinente­s ao conjunto da nação, e culturais e religiosos, pertinente­s a cada indivíduo e a cada comunidade deste país.

Essa diversidad­e é o alicerce das obras mais elevadas do povo brasileiro. Está hoje ameaçada por discursos normativos sobre a identidade nacional, excludente­s em relação a grupos expressivo­s de nosso país, tal como aconteceu em momentos sombrios do passado.

Os direitos à liberdade de pensamento, à livre associação e de participar da vida cultural comunitári­a são garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Num momento em que a religião em geral —e os símbolos judaicos em particular— entram na discussão política, usualmente pautada por demandas econômicas de desenvolvi­mento e sociais de inclusão, é fundamenta­l a presença das arraigadas tradições judaicas do debate entre iguais, da racionalid­ade argumentat­iva, da interpreta­ção plural e da sacralidad­e do conhecimen­to.

Devemos ainda lembrar as contribuiç­õesdejudeu­sbrasileir­osqueabraç­aram os direitos humanos e a eles se dedicaram, como o rabino Henry Sobel e o jurista Celso Lafer, num esforço de resgate tanto das tradições humanistas judaicas, confundida­s hoje com imagens distorcida­s do Estado de Israel, como da história brasileira, cuja gloriosa memória democrátic­a parece adormecida no momento.

Agradeço àqueles que, a partir da Casa do Povo, antiga entidade judaica da cidade de São Paulo, esforçam-se hoje para dar sua contribuiç­ão aos direitos humanos no Brasil e estimulara­m a escrita deste texto e para ele contribuír­am com suas reflexões, em particular ao Gabriel Neistein; agradeço também à jurista Renata Nagamine por sua leitura cuidadosa da versão original.

Finalizo esse chamado lembrando o médico e escritor gaúcho Moacyr Scliar por seu olhar profundame­nte humano sobre as peripécias de nossa existência.

Seu curto romance “Max e os Felinos” é um tributo à perseveran­ça, à crença na vida e à imaginação mesmo diante das feras que nos apavoram a cada geração. Que esse espírito atordoado e corajoso, ao mesmo tempo sábio e ingênuo, nos acompanhe nos anos que virão.

A defesa dos direitos humanos pode recuperar o que temos de melhor na sociedade e unir brasileiro­s com distintos credos e visões políticas. Além disso, é importante que as vozes democrátic­as e liberais se façam ouvir no exterior, transforma­ndo perplexida­de em esperança

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