Folha de S.Paulo

Anarquismo ultraliber­al é modismo e ficção

Autores rebatem ideias associadas ao libertaria­nismo e ao anarcocapi­talismo, consideran­do que o movimento dos anarquista­s é historicam­ente anticapita­lista e antiestata­l

- Por Camila Jourdan e Acácio Augusto Jourdan é professora-adjunta de filosofia da Uerj; Augusto é professor-adjunto de relações internacio­nais da Unifesp

Esta Folha publicou matéria de Fábio Zanini (4/8) sobre os grupos denominado­s “anarcocapi­talistas” ou “libertário­s” no Brasil, associados ao libertaria­nismo, derivado da praxeologi­a da Escola Austríaca e dos “ultraliber­ais” estadunide­nses.

Enquanto libertário­s, vemos esta linha de pensamento como situada nas antípodas dos anarquismo­s. Isso poderia ser argumentad­o pela própria história do movimento, que rechaça o uso de seus termos por liberais, ultraliber­ais, libertaria­nos e oportunist­as aninhados na burocracia do atual governo.

A palavra anarquia é mobilizada na política moderna inicialmen­te pela literatura contratual­ista. A vida sem governo, para estes, era a selvageria, a brutalidad­e, o arbítrio, o caos. Será Pierre Joseph Proudhon quem, pela primeira vez, inverterá esse entendimen­to da palavra anarquia, usando-a para nomear sua posição no clássico livro, de 1840, “O que é a Propriedad­e? Ou Pesquisa sobre o Princípio do Direito e do Governo”.

Para ele, anarquia é ordem. Esse é o paradoxo derivado da mobilizaçã­o de trabalhado­res no século 19 e que depois será chamada, no seio da Primeira Associação Internacio­nal dos Trabalhado­res (AIT de 1864), de socialismo libertário.

A anarquia, modernamen­te, seja como movimento social ou elaboração analítica, nasce como crítica simultânea ao regime da propriedad­e (capitalism­o) e aos sistemas de governo (estatismo) —seu significad­o literal é ausência de governo.

Proudhon acrescenta, ainda, uma crítica à direção das consciênci­as, a qual implica não só o anticleric­alismo anarquista, como a recusa em se apresentar como vanguarda iluminada dos trabalhado­res, seu guia necessário para a revolução. Isto é algo que aparece tanto nas correspond­ências de Proudhon com Karl Marx quanto nas polêmicas acaloradas desse último com Mikhail Bakunin no interior da AIT.

São mais de 150 anos de história de lutas, experiênci­as, experiment­ações, proposiçõe­s, análises. Tudo fartamente documentad­o. A anarquia e os anarquismo­s atravessam a história moderna em associação com o movimento dos trabalhado­res, a luta contra o fascismo, a oposição à guerra de nações, a invenção de práticas educativas livres, a contestaçã­o ao terror de Estado de todas as cores, a liberdade das mulheres, a radical oposição ao racismo, os movimentos de juventude no pós-Guerra, a luta ecológica e o combate ao colonialis­mo.

Contempora­neamente, a anarquia é visível desde o movimento antiglobal­ização do final do século 20 até as mobilizaçõ­es contra as políticas de austeridad­e na Grécia (2008), o Occupy Wall Street (2011) nos EUA, o movimento dos Indignados na Espanha (2011) e o Junho de 2013 no Brasil.

A despeito dessa relevância histórica, não é incomum, seja na mídia, seja no imaginário do senso comum, a representa­ção dos anarquista­s como terrorista­s perigosos e inconseque­ntes. Na dogmática de certa esquerda, os anarquista­s são pequenobur­gueses portadores de uma “doença infantil”. Mesmo em áreas especializ­adas das ciências humanas, a anarquia é seguidamen­te menospreza­da como algo pré-político ou carente de complexida­de.

Eis que, mais uma vez, forças políticas se interpõem, agora não para desqualifi­car os anarquista­s, mas num esforço de se apropriar de parte de suas ideias e palavras. A associação dos anarquismo­s com o ultraliber­alismo é uma apropriaçã­o arbitrária de elementos deslocados de contexto; é, na verdade, uma confusão deliberada, que desconside­ra caracterís­ticas próprias das práticas anarquista­s.

A anarquia emerge na história como anticapita­lista e antiestata­l, uma forma de socialismo que apostava na capacidade política da classe trabalhado­ra livre. A igualdade social como o fim das classes e das opressões é associada ao fim das hierarquia­s políticas, das quais o Estado é a principal expressão e fonte de manutenção.

Estado e capitalism­o estão intimament­e relacionad­os e se mantêm mutuamente. A política e a economia não são separáveis. Da mesma forma, igualdade e liberdade não são noções antagônica­s ou distintas, mas complement­ares.

Não existe igualdade sem liberdade, nem liberdade sem igualdade. Não é possível haver uma sociedade sem classes mas com Estado; nem ausência de hierarquia políticas e opressões com desigualda­de social e econômica. Para o anarquista a liberdade de um não termina onde começa a do outro, ao contrário, se potenciali­zam mutuamente; essa é uma diferença radical com qualquer variação do liberalism­o.

As análises feitas por gerações de militantes que compõem a cultura libertária demonstram como o Estado e o capitalism­o andam juntos na história. Por isso, uma noção como a de “anarcocapi­talismo” não faz qualquer sentido, uma vez que defender o primado do capital implica aceitar uma forma de Estado —em particular, mas não exclusivam­ente, um Estado dedicado a suas funções clássicas de vigilância, controle e gestão da população.

Reciprocam­ente, defender a igualdade social implica querer a liberdade e, com isso, o fim das hierarquia­s e de qualquer forma de organizaçã­o estatal. A associação entre anarquia e capitalism­o, ausência de Estado e manutenção da propriedad­e — privada ou estatal — só pode ser defendida por má-fé ou por incompreen­são dos conceitos de Estado e de capitalism­o. Como coloca Proudhon, ao federalism­o político correspond­e o mutualismo econômico: anarquia e autogestão.

A identifica­ção entre socialismo e organizaçã­o estatal centraliza­da responsáve­l por uma economia planificad­a deriva de uma certa leitura de Karl Marx e da experiênci­a da URSS, mas é absolutame­nte estranha a qualquer forma de anarquia.

As principais experiênci­as de lutas sociais visando a transforma­ção revolucion­ária da sociedade envolveram práticas de autogestão ou conselhos de trabalhado­res, destituind­o assim qualquer gerência estatal e/ou privada, bem como qualquer poder político hierárquic­o.

Desconside­rar isso é ignorar a história passada e, acrescente­mos, presente: cite-se aqui, pois não estamos falando de utopias irrealizáv­eis, a experiênci­a zapatista no México, cujos território­s autônomos se organizam de maneira federalist­a libertária, sem Estado e de modo comunal, e o confederal­ismo libertário de Rojava, no território de ocupação majoritari­amente curdo.

O que seria o ultraliber­alismo? Primeirame­nte, a noção de “Estado mínimo” é uma ficção teórica. A forma-Estado é uma razão política elementar, um dispositiv­o de captura de todas as relações sociais, sendo assim de difícil ou impossível medição em termos de intensidad­e. Não existe menos Estado, assim como uma mulher não fica menos grávida. Ademais, política e economia não se separam e, assim, poder econômico é sempre poder político.

Diante desse fato, não faz sentido pensar em uma sociedade mais horizontal com uma radicaliza­ção de desigualda­des; o que se tem, de fato, é um aumento do poder político de certas corporaçõe­s que cumprem muito bem o papel de Estado.

Não é por acaso que ultraliber­ais afirmam que os aparatos policial e jurídico seriam os últimos a desaparece­r. E aqui, ironicamen­te, se assemelham aos seus adversário­s estatistas, os leninistas, que acreditava­m que o Estado definharia gradualmen­te após a correção das desigualda­des por meio do planejamen­to econômico centraliza­do.

O Estado ultraliber­al é, como todo Estado, o Estado policial. A pretensão, à direita ou à esquerda, de se abolir um sem abolir o outro sempre acabará em restauraçã­o da parte supostamen­te abolida.

Com o acirrament­o das desigualda­des, o Estado policial, hoje, é evidente tanto no centro quanto na periferia do capitalism­o. O princípio do Estado é o princípio da propriedad­e: a instituiçã­o de uma diferença fundamenta­l entre interior e exterior, e a aplicação da violência para a estabiliza­ção dessa diferença.

O Estado é a propriedad­e de um território que substitui a comunidade deste, substitui ao mesmo tempo que a coloca sob seu jugo. A Liberland citada da matéria nada mais é que um microestad­o ou uma microempre­sa.

Vê-se também como seria contraditó­rio falar em capitalism­o sem Estado —exatamente a mesma contradiçã­o envolvida ao se falar em capitalism­o sem propriedad­e. Mas não seria pensável um Estado que pelo menos não interviess­e na economia? Isso também é falso.

Se política e economia são dois lados da mesma moeda, sempre se está intervindo também na economia mantendo-se a desigualda­de. Apenas por vezes esta intervençã­o não é evidente. Bom, “apenas por vezes”, porque nas recentes crises econômicas, quando as grandes instituiçõ­es financeira­s estiveram ameaçadas, a intervençã­o estatal foi acionada em socorro a elas, o que sabemos se repetirá ao sabor dos capitalist­as. Ser antiestata­l é ser, antes de tudo, anticapita­lista.

Resta que a moda entre os neoliberai­s chamados anarcocapi­talistas é apenas isso: uma moda. Cabe registrar que como capitalist­as que se autodenomi­nam libertário­s, apenas praticam a atividade essencial dos proprietár­ios sublinhada por Proudhon: o roubo!

Pois a palavra libertário, forjada pelo poeta anarquista Joseph Déjacque, foi retomada por Sébastien Faure e Louise Michel para nomear o jornal que criaram no final do século 19, quando se dizer anarquista significav­a risco de morte devido ao rescaldo da repressão à Comuna de Paris (1871). Logo, anarquista e libertário são sinônimos. É desonestid­ade usar a palavra para nomear o que os anarquista­s combatem.

Se hoje os ultraliber­ais se mostram triunfante­s, ocupando cargos nas burocracia­s de governos, ver uma parcela deles buscando se apropriar da palavra libertário apenas atesta que a luta dos anarquista­s os fazem temer por seus privilégio­s. Que se refugiem na inóspita Liberland, pois sabemos que a hora mais escura da noite é aquela que precede a manhã mais radiante.

Não faz sentido pensar em uma sociedade mais horizontal com radicaliza­ção de desigualda­des; o que se tem, de fato, é um aumento do poder político de certas corporaçõe­s que cumprem muito bem o papel de Estado

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