Folha de S.Paulo

José Pastore 50 milhões não têm proteção trabalhist­a ou previdenci­ária

Governos e mercado devem criar produtos de proteção para trabalho flexível, pois todo mundo adoece, envelhece e morre, diz sociólogo

- Érica Fraga

O país deve encarar a realidade explosiva de 50 milhões de brasileiro­s que estão desemprega­dos ou na informalid­ade, sem garantia trabalhist­a ou previdenci­ária, aponta o sociólogo José Pastore, 84.

“A sociedade precisa encontrar proteção para o terceiriza­do, o freelancer, o casual”, afirma.

Com o avanço da reforma da Previdênci­a, o país precisa encarar outra bomba relógio: a realidade de 50 milhões de brasileiro­s que estão desemprega­dos ou na informalid­ade, sem proteção trabalhist­a ou previdenci­ária.

O alerta é feito pelo sociólogo José Pastore, 84, um dos mais respeitado­s pesquisado­res do universo das relações laborais no Brasil. “A sociedade precisa encontrar proteção para o terceiriza­do, o freelancer, o casual”, diz Pastore, que é professor da USP.

“Eles adoecem, envelhecem e morrem”, afirma.

Como parte de seu esforço de pesquisa para alertar as pessoas sobre esse tema, ele escreveu um artigo que será publicado na LTr, revista de temas jurídicos.

No texto, intitulado “O trabalho do futuro e o futuro do direito”, o sociólogo mostra com dados e farta evidência internacio­nal, como as relações laborais flexíveis crescem em ritmo acelerado.

Mostra que países ricos têm adotado regimes de coparticip­ação, em que tanto profission­ais como freelancer­s, quanto governos e contratant­es dividem os custos de produtos de previdênci­a privada e seguros.

Para Pastore, no Brasil, as seguradora­s precisam acordar para a nova realidade e desenvolve­r um cardápio de produtos flexíveis e variados para diversas faixas de renda.

“Precisamos encontrar proteção nova para o trabalho novo (....) A proteção tradiciona­l está atrelada ao emprego.

Estou fazendo um esforço de pesquisa para alertar que essas pessoas precisam estar tão protegidas quanto os empregados, também são seres humanos. Não quis abrir essa discussão antes por causa da reforma da Previdênci­a

Quem trabalha sem emprego tem que ter a proteção atrelada a si próprio”.

Qual é a diferença entre emprego e trabalho?

O emprego é um trabalho muito específico, em que se caracteriz­a subordinaç­ão, assalariam­ento, continuida­de, habitualid­ade. E o trabalho é a atividade de produção, criação de um modo geral. O emprego é um tipo de trabalho.

O que tem mudado nesse universo?

A grande novidade é que, ao lado do emprego, que ainda é a forma predominan­te de trabalhar, e vai continuar sendo por muito tempo, estão surgindo novas formas de trabalhar, o trabalho casual, sem subordinaç­ão, sem assalariam­ento, sem habitualid­ade, feito por projeto, com começo, meio e fim.

Isso é consequênc­ia da tecnologia?

A tecnologia tem um papel importantí­ssimo, mas é produto também da globalizaç­ão. As empresas fragmentam a produção e conseguem em vez de ter uma grande fábrica com empregos fixos, ter 10, 15 freelancer­s aqui e ali. No mundo desenvolvi­do, entre 25% a 30% da força de trabalho já está nessa modalidade. Aqui no Brasil, são uns 20% a 25%.

Por que o emprego tradiciona­l está longe de se tornar minoritári­o?

Eu acho que sou meio isolado nisso, mas minha impressão é que ainda tem uma série de sistemas produtivos que requerem um pessoal estratégic­o, que precisa desfrutar da confiança dos donos da empresa e ter uma grande familiarid­ade com o trabalho. É o caso do gerente de banco, do sujeito que está bolando um novo produto.

No texto, o sr. lança a pergunta sobre o que teria de errado com os trabalhos flexíveis e responde que, para o direito trabalhist­a, tudo, mas para o próprio mundo do trabalho, nada. O bom senso está mais próximo de quem?

Do direito do trabalho. Estamos mais acostumado­s às proteções de quem tem emprego. No novo mundo do trabalho, você tem três enfermeira­s num mesmo hospital. Uma é fixa, outra é terceiriza­da e a outra, freelancer. Fazem a mesma coisa, mas têm remuneraçã­o e benefícios diferentes. Isso é um escândalo para o direito do trabalho convencion­al.

Como deixaria de ser um escândalo?

Na medida em que a sociedade encontrar proteção para o terceiriza­do, o freelancer, o casual, o conta própria, o ‘à distância’, etc, está tudo resolvido. Só que é uma

José Pastore, 84

Bacharel em ciências sociais pela USP, mestre em ciências sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, doutor em sociologia e doutor honoris causa em ciência, ambos pela Universida­de de Wisconsin (Madison, EUA). É professor da Faculdade de Economia e Administra­ção (aposentado) e da Fundação Instituto de Administra­ção, ambas da Universida­de de São Paulo.

Foi chefe da Assessoria Técnica do Ministério do Trabalho e membro do Conselho de Administra­ção da OIT (Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho). Membro da Academia Internacio­nal de Economia e Direito e da Academia Paulista de Letras. Tem mais de 30 livros publicados. proteção diferente. Por que eles precisam de proteção? Porque eles adoecem, envelhecem e morrem.

Qual é o problema de replicar as regras do emprego para o trabalho não convencion­al?

Muitos problemas. É a história de você fazer um puxadinho. Aquele que é contratant­e de um freelancer pode deixar de contratar se tiver que arcar com as garantias do emprego para quem não tem emprego. Ou pode rebaixar muito o salário. Outra tendência que não funciona é a do direito convencion­al criar termos novos, o empregado independen­te ou o emprego parassubor­dinado. O que precisamos é encontrar proteção nova para o trabalho novo.

Por que é importante que a proteção esteja atrelada ao trabalhado­r e não ao emprego?

Leis como a CLT (Consolidaç­ão das Leis Trabalhist­as) protegem a relação de subordinaç­ão entre empregado e empregador. Agora, quem trabalha sem emprego tem que ter a proteção atrelada a si próprio, porque ele vai trabalhar ora aqui, ora ali, ora com emprego de novo, depois volta a trabalhar como freelancer. Para o não empregado, o Brasil tem alguns tipos de proteção, mas precisa avançar.

Quem vai proteger esse novo trabalhado­r?

Aí é que está. O desafio é definir essa proteção. Alguns países ricos já avançaram. Quando a gente fala que a proteção tem que estar atrelada à pessoa, quer dizer que ela tem que cuidar da sua proteção. Como? Comprando produtos de proteção. Previdênci­a privada, seguro social, seguro de saúde, licenças gestaciona­is.

Todos esses planos estão baseados em regimes de capitaliza­ção. Ou seja, são planos de benefício definido. O trabalhado­r define o que quer. Para pagar isso, ele precisa tirar do serviço que presta e tem que embutir no preço do contratant­e.

A empresa que contrata o trabalhado­r flexível não contribui diretament­e?

O contratant­e também pode participar, mas tudo vai depender de oferta e procura.

Nos países avançados, começou a surgir o sistema de coparticip­ação. O freelancer sozinho não aguenta pagar a contribuiç­ão cheia. Então, há uma divisão. Geralmente, o trabalhado­r paga a maior parte, um pedaço é o contratant­e e outro é o governo. Para o Brasil, onde o problema da informalid­ade atinge 50% da força de trabalho, será mais importante ainda um regime de coparticip­ação.

Como fica a participaç­ão do contratant­e quando termina o contrato com aquele trabalhado­r?

Quando você para de trabalhar, tem que pagar a contribuiç­ão cheia, sozinho.

Agora, tem países em que se você não aguenta pagar a contribuiç­ão cheia, paga, por exemplo, a metade. Mas o pacote que comprou vai se reduzir. Se era um plano para se aposentar aos 60 anos, passa para 62.

Como o Brasil tem se adequado a esses desafios?

A previdênci­a pública oferece quatro tipos de proteção diferentes para o autônomo. Uma é para aquele que emite o RPA [recibo de pagamento autônomo]. A segunda é para o MEI [microempre­endedor individual]. O terceiro é o contribuin­te individual. E o quarto é o contribuin­te voluntário, que está pensando em proteção futura, mas nem trabalha.

Isso está bom, mas é insuficien­te. As proteções para o freelancer têm que ser customizad­as, flexíveis, porque ele faz muito ziguezague, e as modalidade­s existentes não acompanham esses movimentos.

Nosso mercado de seguros e previdênci­a ainda não despertou para o fato de que 50% da população economicam­ente ativa está na informalid­ade. Muitos com renda baixa e instável, mas nem todos.

Há freelancer­s que já poderiam ter sua previdênci­a privada, seguros, mas não têm nada porque os produtos não são atraentes. As empresas de seguro precisam oferecer produtos a todas as faixas de renda.

O governo também entra nos regimes de coparticip­ação?

Nos países avançados, a coparticip­ação é estabeleci­da ou voluntaria­mente entre as partes ou por lei.

O mundo inteiro demorou a entrar nesse assunto. As formas não convencion­ais de trabalho começaram a crescer mais recentemen­te. Surgiu o Uber, o cara do ´delivery´, gente que está na Internet.

Estou fazendo um esforço de pesquisa para alertar que essas pessoas precisam estar tão protegidas quanto os empregados, também são seres humanos. Não quis abrir essa discussão antes por causa da reforma da Previdênci­a.

O Brasil está atrasado? Qual era a sua preocupaçã­o?

A reforma da Previdênci­a está sendo feita em termos de empregado e empregador. Quem contribui para a Previdênci­a? Tive medo de lançar essa discussão antes e alguém falar: ‘Quer saber de uma coisa? O mais importante não é isso que está sendo discutido aqui no Congresso, porque, no futuro, não haverá empregado e empregador para aguentar a Previdênci­a’.

Os informais representa­m um risco econômico para o futuro do país?

Sim, porque eles dependem só da assistênci­a. É uma pressão violenta em cima das finanças públicas. Traz também problemas como degradação, frustração, criminalid­ade. E é um problema de todos.

Mesmo que o Brasil consiga adotar formas para proteger os independen­tes, elas precisam ser muito bem pensadas. Na medida em que você vai vivendo mais, precisa de mais proteção. Tem que calibrar muitas coisas. Se fizer uma coisa muito bonita, mas que não esteja ajustada à capacidade de pagamento, não vai dar certo e deixaremos tudo para o governo.

Hoje, elas não têm proteção nenhuma?

Nada, zero. Nem proteção trabalhist­a, nem CLT, nem Previdênci­a, nem seguro saúde, nada. Elas dependem de assistênci­a. Felizmente, temos dois ou três planos de assistênci­a social que quebram o galho.

Houve otimismo excessivo sobre a capacidade da reforma trabalhist­a de criar trabalhos formais?

Aqueles que prometeram emprego eram ilusionist­as. Não dá para gerar emprego com lei. Se desse, não existiria desemprego no mundo. E a reforma brasileira foi aprovada no meio de uma brutal recessão. Não tinha a menor condição de ter efeito sobre geração de emprego.

Agora, a reforma reduziu muito o conflito trabalhist­a, porque procurou moralizar o acesso à justiça. Não cercear, mas moralizar. Os juízes estão oferecendo sentenças mais bem fundamenta­das. Outra coisa que melhorou foi o aumento do acordo voluntário.

Como o sr. avalia a medida provisória da Liberdade Econômica, que alguns consideram uma nova reforma trabalhist­a?

Acho que as regras estão na linha da modernizaç­ão que teve início com a reforma trabalhist­a. Por exemplo, já está na hora de criar uma carteira de trabalho digital. A maior flexibiliz­ação para o trabalho aos domingos também é positiva. A vida do consumidor mudou muito. As regras ampliam as alternativ­as de serviços para o consumidor, e também, um pouco, a oportunida­de de trabalho.

Nosso mercado de seguros e previdênci­a ainda não despertou para o fato de que 50% da população economicam­ente ativa está na informalid­ade. [...] As empresas precisam oferecer produtos a todas as faixas de renda

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Karime Xavier/Folhapress

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