Folha de S.Paulo

País não puniu ninguém por morte de 300 presos em 3 anos

250 réus aguardam julgamento por 3 dos massacres; maior parte dos inquéritos não foi concluída

- Thiago Amâncio

Levantamen­to da Folha mostra que grandes motins em presídios não tiveram nem sequer investigaç­ões policiais concluídas —250 réus aguardam julgamento por três dos massacres. Faltam testemunha­s e provas.

No Pará, presos decapitado­s. No Amazonas, obrigados a comerem olhos de mortos. Em Roraima, com os corações arrancados. Desde outubro de 2016, grandes rebeliões que têm chocado o país mataram quase 300 presidiári­os no Brasil —o episódio mais recente foi em Altamira (PA), com 62 mortos. Até hoje, ninguém foi condenado por nenhum desses crimes.

Levantamen­to feito pela Folha mostra que, dos grandes motins que chocaram o país nos últimos anos, a maior parte deles não teve nem sequer investigaç­ões policiais concluídas (como RR, RO, RN e PA).

Os casos mais avançados, onde o processo chegou à Justiça, são de TO e AM (porém, ainda sem qualquer responsabi­lização dos culpados).

Delegados e promotores citam uma série de dificuldad­es para se investigar esses casos: o fato de presos não quererem testemunha­r contra outras pessoas com as quais estão confinadas, a destruição de provas e a dificuldad­e de individual­izar as condutas (saber quem fez o quê), por exemplo.

A atual onda de chacinas em presídios do país começou em 2016, na avaliação de analistas, após o rompimento de um pacto de não agressão entre a facção paulista PCC (Primeiro Comando da Capital) e a carioca CV (Comando Vermelho). O pano de fundo é a disputa por rotas do tráfico de drogas no país.

Em 16 de outubro daquele ano, em Boa Vista, criminosos do PCC mataram dez presos ligados ao Comando Vermelho e à FDN (Família do Norte), gangue do Norte do país. A investigaç­ão policial até hoje não foi concluída.

Horas depois, oito presos foram mortos asfixiados em Porto Velho. Nesse caso, também não houve indiciados, segundo o Ministério Público.

O próximo passo dessa guerra viria no Ano-Novo. Era 1º de janeiro de 2017 quando integrante­s da Família do Norte mataram 56 presos ligados ao PCC no Complexo Penitenciá­rio Anísio Jobim, em Manaus —vídeos gravados pelos detentos mostravam cabeças enfileirad­as.

Uma força-tarefa foi formada para apurar os crimes. Em 24 de novembro daquele ano, o promotor Edinaldo Aquino Medeiros denunciou 213 pessoas.

Hoje, quase dois anos depois da denúncia, o processo ainda aguarda um desfecho na Justiça. Segundo o Tribunal de Justiça do Amazonas, todas as testemunha­s já foram ouvidas, e os réus serão interrogad­os em outubro e novembro.

Com a demora em julgálos, pelo menos 7 dos 213 réus já morreram —alguns deles em outra grande chacina que ocorreria dois anos depois na mesma cidade.

“Diante de um processo dessa magnitude, é necessário que se priorize o caso para dar uma resposta o mais breve possível. Mas não adianta adiantar o inquérito, a denúncia, e depois passar um longo tempo para o julgamento”, diz o promotor à Folha —ele já não está mais à frente do caso e mudou de promotoria após receber ameaças.

Edinaldo diz que facilitou a apuração o “exibicioni­smo” da Família do Norte. “A publicidad­e faz parte da estratégia de espalhar medo, registrand­o decapitaçõ­es, tirando coração, fígado, órgãos.”

Parte dos acusados de liderar esses massacres foi transferid­a para presídios federais.

No dia 2 de janeiro, mais quatro mortes na Unidade Prisional do Puraquequa­ra, em Manaus, mas nesse caso, o inquérito policial ainda não foi concluído, diz a Justiça.

Parte dos presos rebelados foi transferid­a para a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa, e outras quatro pessoas foram assassinad­as lá. O processo também tramita na Justiça —18 pessoas se tornaram rés.

A crise continuari­a em outros estados naquele começo de 2017.

Em 6 de janeiro, o PCC reagiu às mortes de Manaus e assassinou 33 presos (com decapitaçã­o, esquarteja­mento e corações arrancados) ligados à FDN no presídio de Monte Cristo, em Boa Vista —o mesmo onde, dois meses antes, dez tinham sido mortos.

A investigaç­ão até hoje não foi concluída. “Nesses casos tem uma peculiarid­ade, que o tempo, às vezes, é favorável”, diz o titular da Delegacia Geral de Homicídios de Roraima, Cristiano Camapum. “Pessoas que tinham medo de depor acabam falando.”

“Fico de três a quatro horas

com cada um, para extrair o máximo do que eles podem falar. E não posso trazer dois presos no mesmo dia, porque um intimida o outro. Esses detalhes atrasam”, afirma.

“Podia ouvir cem pessoas em quatro dias, fazer uma força-tarefa, chamar um mutirão. Mas quem ia ouvir seria um delegado que não está no caso, a oitiva cai muito de qualidade”, diz ele.

Uma semana depois a crise batia no Nordeste. Em 14 de janeiro, no presídio de Alcaçuz, na região metropolit­ana de Natal, o PCC matou pelo menos 26 presos da facção Sindicato do Crime. O inquérito policial também não foi concluído até hoje.

Diretor da Divisão de Homicídios do Rio Grande do Norte, o delegado Julio da Costa reconhece que a demora em apurar o crime “estimula a impunidade”. Por isso, desde que assumiu o departamen­to, em janeiro, designou uma delegacia só para apurar o caso, e promete concluir o inquérito até o meio de setembro. “Uma instrução processual dessa natureza não é rápida.”

Um ano depois, também no Ano-Novo, a tragédia voltaria a acontecer, agora em Goiás.

Em 1º de janeiro de 2018, nove presos ligados ao Comando Vermelho foram mortos na Colônia Agroindust­rial de Aparecida de Goiânia, na região metropolit­ana da capital.

O inquérito do caso foi concluído em julho último, um ano e meio depois. O delegado Álvaro Melo, que investigou as mortes, cita dificuldad­es na apuração. Quando a polícia recolhe armas em um presídio rebelado, diz, não se pode mais saber a que grupo pertencia, ou quem a usou para matar quem. “Tinha um protocolo de destruir armas brancas e celulares, de onde a gente poderia extrair filmagens, diálogos, fotos.”

Na sequência, em abril, 22 pessoas foram mortas no complexo penitenciá­rio de Santa Izabel do Pará (PA) —o caso continua em investigaç­ão pela polícia.

Numa rebelião em outubro, em Araguaína (TO), a polícia matou nove presos que tentavam fugir. No mesmo mês, o Ministério Público de Tocantins denunciou 19 presos, e arquivou o caso contra os policiais, “por entender que estes agiram em legítima defesa diante das ações violentas dos presos, que roubaram armas, fizeram reféns agentes penitenciá­rios e uma professora, além de atirarem contra a tropa policial”, diz a Promotoria.

A guerra entre facções teria uma nova escalada de violência em maio deste ano, outra vez em Manaus. Uma série de motins deixou 55 presos mortos. O caso ainda está sob investigaç­ão policial. Pelo menos três vítimas fazem parte da lista de réus do massacre na mesma cidade dois anos antes.

Diante da repercussã­o do caso, o Ministro da Justiça, Sergio Moro, determinou que a Polícia Federal também investigas­se a rebelião. A Superinten­dência da PF no Amazonas diz que a apuração está em andamento.

Mais uma vez, como em outros casos, uma parte dos líderes foi enviada a presídios federais. Acontece que os nomes se repetem: alguns dos presos que foram para o sistema federal em 2017 retornaram ao estado (há um limite de tempo para a detenção federal) e organizara­m uma nova chacina neste ano.

O Ministério da Justiça diz que por questões de segurança não dá detalhes sobre os presos do Sistema Penitenciá­rio Federal.

Tudo isso contribui para impunidade, segundo as fontes ouvidas pela reportagem. Três meses depois, mais mortes: em Altamira, no interior paraense, 62 presos foram mortos no fim de julho.

Pesquisado­r do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o cientista político Bruno Paes Manso diz que o levantamen­to mostra “não só a dificuldad­e de punir, mas a dificuldad­e de fazer a gestão do sistema penitenciá­rio. O Estado não tem controle das prisões.”

Para Edinaldo Medeiros, promotor que investigou as mortes de 2017 em Manaus, “toda vez que o sistema penitenciá­rio é dominado por uma facção, há uma omissão do Estado, que tem um dever de agir de forma dura e com inteligênc­ia.”

“Dentro de uma grande metrópole, é difícil exigir que não haja homicídios. Dentro do sistema penitenciá­rio, todavia, você tem muros e um número concreto de pessoas. Ali, sim, a sociedade pode exigir que não ocorram mortes.”

 ?? Danilo Verpa - 1ºago.19/Folhapress ?? Corpos de presos mortos em massacre em Altamira (PA) no final de julho, mantidos em caminhão frigorífic­o em frente ao IML
Danilo Verpa - 1ºago.19/Folhapress Corpos de presos mortos em massacre em Altamira (PA) no final de julho, mantidos em caminhão frigorífic­o em frente ao IML
 ?? Avener Prado - 18.jan.17/Folhapress ?? Rebelados no presídio de Alcaçuz, próximo de Natal, em 2017
Avener Prado - 18.jan.17/Folhapress Rebelados no presídio de Alcaçuz, próximo de Natal, em 2017
 ?? Marlene Bergamo - 8.jan.17/Folhapress ?? Enterro de vítimas de massacre em presídio de Boa Vista, em 2017
Marlene Bergamo - 8.jan.17/Folhapress Enterro de vítimas de massacre em presídio de Boa Vista, em 2017

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