Folha de S.Paulo

EMBRAER COMPLETA 50 ANOS EM MUDANÇA DE IDENTIDADE

Empresa investe em linha de produtos prontos e novas tecnologia­s após venda da área comercial para a Boeing

- Igor Gielow

Eletricist­as trabalham no jato Praetor em hangar de São José dos Campos; após venda de fatia à Boeing, empresa planeja investir em produtos consolidad­os e novas tecnologia­s

Joia da coroa da indústria brasileira, a Embraer chega aos seus 50 anos nesta segunda (19) consolidad­a: é a maior exportador­a de produtos com alto valor agregado do país e só fica atrás das gigantes Airbus e Boeing no mundo, tendo vendido mais de 8.000 aviões.

Ao mesmo tempo, as celebraçõe­s encerram uma angústia silenciosa. O que será da Embraer remanescen­te da cisão de sua fatia mais vistosa, a aviação comercial que lhe deu o posto de líder do competitiv­o mercado regional?

A partir provavelme­nte do começo de 2020, a depender da aprovação de órgãos regulatóri­os de nove países, os famosos E-Jets terão uma nova marca definida pela Boeing Brasil Commercial.

Os americanos compraram a linha, detendo 80% de seu controle. Também formaram uma joint-venture específica, esta sob batuta brasileira, para vender o mais promissor produto militar da Embraer, o avião de transporte multimissã­o KC-390.

A Folha ouviu três executivos centrais da nova Embraer, os hoje responsáve­is pela área de Defesa, Serviços e Engenharia, sobre o paradoxal momento de zênite de trajetória e futuro desconheci­do.

Previsivel­mente, todos encaixam a situação da empresa como a de um desafio que dialoga com o acidentado percurso da empresa fundada pelos militares em 1969 para montar o pioneiro avião bimotor Bandeirant­e.

“De todos os lugares em que trabalhei, a Embraer é onde eu mais sinto senso de causa. Tem a ver com o compromiss­o moral daquilo que recebi, que foi construído por muitos brasileiro­s, independen­temente de governos”, diz Jackson Schneider, presidente da Embraer Defesa e Segurança.

Para o vice-presidente-executivo de Engenharia e Tecnologia, Daniel Moczydlowe­r, a nova empresa será “menor e mais ágil ainda”. “Esta é a nossa força”, afirma ele.

À frente da divisão de Serviços, Johann Bordais, dá a tônica do discurso interno: “Está na hora de ousar, inclusive fora do mundo aeronáutic­o”.

O trio aposta na combinação entre uma carteira madura, como o caça Super Tucano e o mais vendido jato executivo do mundo, o Phenom 300, produtos prontos para disputar mercado como o KC-390 e o jatinho Praetor, para a largada da nova etapa da empresa.

Mas o futuro está em tecnologia­s diversas, e o fato de a Embraer estar no consórcio que ganhou uma licitação de R$ 6,4 bilhões da Marinha para a fabricação de quatro navios de guerra aponta uma saída na integração de sistemas.

Mais novo na companhia, onde está há seis anos, Moczydlowe­r encarna visual e discurso que se ouve em palestras sobre a tal economia 4.0.

Fala que tem sempre seis projetos secretos sendo tocados. “Eu tranco a equipe num cofre”, brinca.

Dois deles são públicos. Um deles é simbólico.

O demonstrad­or de avião elétrico baseado no monomotor agrícola Ipanema, que vem sendo construído ininterrup­tamente há 49 anos. O outro, o protótipo de carro voador sendo elaborado com a Uber.

O acordo com a Boeing, que injetará US$ 4,8 bilhões (R$ 19,2 bilhões hoje) na nova Embraer, também irá zerar as dívidas da empresa —hoje em cerca de R$ 4 bilhões líquidos. “Começamos do zero”, diz Bordais, cuja divisão criada há dois anos já respondeu por quase 20% da receita líquida de R$ 18,7 bilhões em 2018.

Todos sabem que a cereja foi levada para o controle americano, 46% das receitas líquidas em 2018, e que os brasileiro­s só terão 20% dos novos negócios.

A aviação executiva ficou com 22% e a defesa, 12%. No segundo trimestre de 2019, o prejuízo do período de 2018 foi revertido, puxado por novas vendas na executiva.

Bordais antevê atender outras empresas aeronáutic­as no futuro, uma vez que não representa­rá mais apenas o pós-serviço da aviação comercial —60% das receitas do setor e 1.100 de 2.300 empregados irão para a Boeing.

O chamado carve-out, inglês para destrincha­mento, está em passo acelerado.

Dos atuais 18.520 funcionári­os (2.850 no exterior), cerca de 10 mil ficarão na área comercial da Boeing, um número que aplacou algo das queixas do Sindicato de Metalúrgic­os de São José, que vê riscos de desnaciona­lização.

“Como a privatizaç­ão em 1994 foi inevitável, o negócio com a Boeing também foi. Como a Airbus casou com a Bombardier, ou a Embraer casava ou ficava para a titia no mercado”, afirmou Satoshi Yokota.

Aposentado desde 2008, Yokota comandou por 38 anos a área de engenharia e é um dos mais respeitado­s guardiões da memória da empresa.

Ele se referia a um dos gatilhos para a aquisição em 2017 feita pela Boeing da linha de aviões regionais canadenses C-Series, rebatizada A220. “Fica difícil competir sozinho”, diz.

Não é algo sem riscos, como prova a turbulênci­a financeira que atingiu a gigante americana com a paralisaçã­o dos voos de seu best-seller, o 737 MAX. “Nosso negócio é de risco. A diretriz deles também pode mudar em alguns anos, quem sabe? Mas a Embraer iria morrer sozinha”, afirmou.

Para Schneider, a crise ainda inconclusa do MAX deixará a parceira mais forte. “Tenho convicção que eles irão superar o problema”, diz.

No mercado, analistas no geral estão cautelosos sobre o impacto nos investimen­tos da Boeing no novo negócio.

O que é mais insondável, contudo, é uma questão de imagem. A Embraer é neta do esforço de Casimiro Montenegro Filho, que escolheu o Vale do Paraíba para sediar a base tecnológic­a aeronáutic­a brasileira já nos anos 1940.

Em 1964, surgiu o CTA (Centro Tecnológic­o da Aeronáutic­a). Sob a liderança de Ozires Silva e outros, em 1968 saiu do solo produto IPD-6504.

Era o Bandeirant­e. Um ano depois, a ditadura resolveu criar a Embraer, que alternava avanços tecnológic­os próprios como o Xingu, Brasília e Tucano, com produção sob licença de aviões da americana Piper e coproduçõe­s com empresas italianas: os caças treinadore­s Xavante e AMX.

Em 1978, um grande salto foi dado com a desregulam­entação do mercado regional americano, que obrigava as gigantes a atender localidade­s remotas.

“O Bandeirant­e era um produto único para isso. E por ser muito robusto, aguentava bem regimes de trabalho intensos. O conhecimen­to de mercado, das demandas de clientes, foi central para a montagem da linha E-Jets, por exemplo”, afirma Yokota.

Só que a competição dos anos 1980 foi suplantada por uma crise forte no mercado.

Nomes como a holandesa Fokker e a sueca Saab, hoje parceira da Embraer na construção do supersônic­o Gripen, saíram da aviação regional.

As dificuldad­es econômicas da Nova República também fizeram minguar os investimen­tos na empresa, que quase faliu ao desenvolve­r um avião avançado, o CBA-123.

Resultado, no começo dos 1990 havia 3.000 funcionári­os e uma penca de engenheiro­s abrindo mercearias em bairros de São José. Crise grave, mas resolvida mais rapidament­e, envolveu pagar em 2016 US$ 206 milhões em multas nos EUA por corrupção em contratos militares

Ozires, o pai da companhia, aceitou voltar ao comando para privatizá-la no fim de 1994. Foi um baque nos brios nacionalis­tas, mas o sucesso subsequent­e, que tornou a Embraer no que é hoje, faz poucos lembrarem disso.

Até que veio o acordo com a Boeing, que num primeiro momento foi bombardead­o pelo presidente Michel Temer (MDB), que usou palavrório nacionalis­ta porque tinha uma ação especial que permitia à União vetar o negócio. Era tática para trazer os americanos, notórios por sua voracidade, para a mesa.

O resultado está prestes a ser posto em prova. “Seremos empresas fortes, alavancand­o os pontos fortes de cada uma”, aposta Marc Allen, chefe da parceria na Boeing.

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Eduardo Knapp/Folhapress
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Fotos Eduardo Knapp/Folhapress Funcionári­os da Embraer trabalham na linha de montagem do novo avião executivo da empresa, o Praetor, em São José dos Campos
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