Folha de S.Paulo

Juros negativos nos países ricos bagunçam relação com investimen­tos

Medo de uma recessão global amplia compra de títulos de dívida de país e faz com que taxa de longo prazo também fique no vermelho

- Tássia Kastner

Uma pessoa que começasse a poupar hoje para a aposentado­ria poderia separar R$ 1.000 para comprar um título público, um investimen­to seguro.

Mas e se ao resgatar o título daqui 30 anos for possível sacar apenas R$ 900, e não R$ 1.000 mais o lucro do investimen­to? Essa aplicação terá parecido uma boa ideia?

Quando se olha para o futuro hoje, esse é o cenário dos títulos de dívida da maioria dos países europeus, um fenômeno que pode mudar a dinâmica de investimen­tos e a forma como funciona o sistema financeiro.

Na Alemanha, todos os títulos de dívida do país têm atualmente retorno negativo. Ou seja, quem emprestar dinheiro ao governo alemão poderá sair no prejuízo em aplicações de dois ou até de 30 anos.

Nos Estados Unidos, os títulos com vencimento em 30 anos rendiam menos de 2% ao ano na semana passada, enquanto papéis de curto prazo tinham taxas ao redor de 1,5% —com percentual abaixo da inflação, esses investimen­tos também geram prejuízos.

A explicação para esse fenômeno, que parece irreal mesmo para o brasileiro mais conformado com a esperada queda da Selic para 5% ao ano, está nas previsões de que a economia global pode mergulhar em uma nova recessão.

O pânico recente foi amplificad­o pelo avanço da guerra comercial travada entre Estados Unidos e China e seu impacto sobre outros países. Isso fez com que investidor­es no mundo corressem em busca de ativos seguros, como são considerad­os títulos de dívidas de países desenvolvi­dos.

O problema é que títulos públicos seguem a regra universal de oferta e demanda: quanto mais gente quer um produto, mais o valor dele sobe. E como o valor do papel e a taxa de juros são inversamen­te proporcion­ais, o rendimento da aplicação cai.

Em todo o mundo, investidor­es têm atualmente mais de US$ 15 trilhões (R$ 60 trilhões) aplicados em investimen­tos com taxas de juros negativos, como são os papéis de dívida do Japão e boa parte da Europa.

Parece completame­nte sem sentido que alguém prefira perder dinheiro a escolher outros investimen­tos com algum potencial de retorno.

“A inflação no mundo está muito baixa, tirando Argentina e Venezuela, não tem inflação em nenhum lugar do mundo. O medo é que qualquer choque negativo possa colocar o mundo numa recessão. E aí todo mundo sai comprando tudo o que encontra”, explica o professor de macroecono­mia do Insper Gino Olivares.

Na verdade, compra-se tudo que for considerad­o seguro. Nesse cenário, ativos de risco (ações, por exemplo) se desvaloriz­am porque investidor­es vendem esses papéis em busca do dinheiro para comprar produtos como títulos de dívida pública, mais seguros.

Afinal, se a economia vai encolher, as empresas vão lucrar menos. Então por que investir em companhias? A lógica é minimizar o prejuízo enquanto o pior não passa.

Assim, desde que os dados econômicos do mundo desenvolvi­do pioraram, as principais Bolsas mundiais passaram a registrar queda, moedas emergentes se desvaloriz­aram ante o dólar e o preço do ouro bate recordes.

O medo é que qualquer choque negativo possa colocar o mundo numa recessão. E aí todo mundo sai comprando tudo o que encontra Gino Olivares professor do Insper

Se eu te cobrar para deixar dinheiro no banco, é muito provável que a reação seja de fuga. Deixo no cofre, perco em poder de compra Luis Braido professor da FGV

Para entender o pânico de agora é preciso, porém, voltar dez anos na história, quando a crise hipotecári­a americana mergulhou o mundo em recessão profunda. Como os bancos se fragilizar­am, não havia crédito para o consumo.

Bancos centrais foram reduzindo juros gradualmen­te para perto de zero, em uma tentativa de estimular empréstimo­s para que pessoas continuass­em a consumir. Isso manteria a economia girando e distante da deflação.

De fato, passada a crise, são dez anos de cresciment­o econômico e agora investidor­es começam a se perguntar se o ciclo estaria se encerrando.

Nos Estados Unidos pós-crise financeira, o Fed (Federal Reserve, o banco central do país) levou os juros do zero ao patamar de 2,25% a 2,50% no ano passado. Mas, em julho, fez um corte que classifico­u como preventivo, na tentativa de suavizar o impacto da guerra comercial sobre a economia do país.

Enquanto isso, na Europa a dinâmica é outra. O BCE (Banco Central Europeu), que fixa a taxa básica de juros dos países da Zona do Euro, zerou a taxa em 2012 e a levou para o terreno negativo em 2014, em mais uma tentativa de tentar fazer a economia do bloco avançar após um longo período de relativa estagnação.

Esses juros negativos reduziram a rentabilid­ade dos

grandes bancos, porque há quatro anos eles precisam pagar, em vez de receber, para deixar parte do dinheiro depositado no banco central.

Com uma nova possível crise à porta, especialis­tas questionam a eficiência de novos cortes de juros e o dano que a medida causaria aos bancos. Uma medida em estudo envolve não cobrar dos bancos por parte do dinheiro que fica depositado no BCE.

“Eu tenho as minhas dúvidas de como se sai dessa armadilha da liquidez —não consegue mais baixar os juros e não consegue mais dar estímulo à economia”, afirma Olivares, do Insper.

A dúvida é como baixar ainda mais um juro já negativo e qual o benefício que pode gerar, dado o impacto sobre o sistema financeiro.

Christian Scarafia, codiretor da agência de classifica­ção de risco Fitch, considera que os bancos europeus têm aprendido a lidar com o cenário adverso, interpreta­do cada vez mais como o novo normal.

Analista da área de bancos da Europa Ocidental, ele afirma que houve cresciment­o nos empréstimo­s para financiame­nto imobiliári­o e no crédito a empresas, ambos com menor risco de calote. E que as instituiçõ­es têm se aventurado em linhas mais arriscadas, com juros maiores, para preservar resultados.

Ainda assim, bancos estrangeir­os têm sido punidos por acionistas na Bolsa, reflexo de lucros menos polpudos à medida em que os juros caíram.

Já a possibilid­ade de cobrar pelos depósitos de clientes que deixam dinheiro parado na conta, como anunciada pelo UBS na Suíça para clientes de altíssima renda, não deve se tornar regra, avalia Scarafia.

Nisso concorda o professor Luis Braido, da escola de finanças FGV. “Se eu te cobrar para deixar dinheiro no banco, é muito provável que a reação seja de fuga. Deixo no cofre, perco em poder de compra”, afirma Braido.

A medida mais suave seria o aumento das tarifas de manutenção de contas, estratégia muito conhecida pelos brasileiro­s, mas menos comuns na Europa. A tarifa funcionari­a como punição, sem reduzir o saldo do cliente.

“Nós vemos bancos aumentando receitas não ligadas a juros e tentando encontrar novas formas de ampliar essas receitas”, diz Scarafia.

Saem-se melhor aqueles que atuam em operações de seguros, por exemplo.

Para o analista da Fitch, isso seria possível mesmo com a entrada de fintechs (empresas de tecnologia do setor financeiro) e bancos concorrent­es no mercado, algo visto com ceticismo pelo professor do Insper.

“Vão surgir outros players que não vão cobrar, não sei em que cenários os bancos vão poder cobrar. Afora o nível de juros, há o aumento da competição pela tecnologia. Me parece pouco provável que os bancos poderão cobrar qualquer tipo de coisa de seus clientes”, afirma.

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