Na contramão da cultura, videogames ganham afagos e regalias do governo
Enquanto setores culturais se batem com Bolsonaro, os videogames ganham do presidente afagos e redução de impostos
“Onde queres comício, flipper-vídeo.” Naquele ano de 1984, quando Caetano Veloso lançava “O Quereres”, política e videogame pareciam ocupar espaços opostos.
“‘Flíper’ era como se chamava pinball, fliperama. Eu via pessoas jogando em frente à TV. Isso contrastava com interesse em comícios, falas políticas em espaço público”, explica Caetano.
Trinta e cinco anos depois, o cenário mudou.
Neste momento em que o termo guerra cultural bate e quica nos discursos tanto de esquerdistas quanto de direitistas, o governo se digladia abertamente com setores como os de cinema e teatro.
Mas há um tipo de produto cultural específico que, em vez de pedradas, ganha afagos: os jogos eletrônicos.
“Um forte abraço gamers!”, postou Jair Bolsonaro, sem se preocupar com a vírgula.
Em falas recentes, o presidente tem feito acenos para a indústria de videogames.
Na semana passada, publicou decreto que reduz alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados, “incidentes sobre jogos de vídeo e suas partes e acessórios”. Bolsonaro também mencionou, em postagem nas redes sociais, taxas de importação para eletrônicos.
No Twitter, como que para justificar a preocupação com os games, o presidente disse que “o Brasil é o segundo mercado no mundo nesse setor”.
Sim, o mercado consumidor brasileiro é grande. Mas, não, não é o segundo. De acordo com a Newzoo, empresa de análise especializada no setor, o país é na verdade o 13°, com 75,7 milhões de jogadores, que gastaram ao todo US$ 1,5 bilhão em 2018.
“O setor de games surgiu como software e, no imaginário, ele ainda está muito próximo do setor de software. Enquanto nas ‘culturas clássicas’ a parte de negócios é uma consequência, o setor de games já nasceu voltado para o mercado. Quase não existe [o debate] ‘mercado versus cultura’”, diz o pesquisador Pedro Zambon, que mapeou o ecossistema brasileiro de jogos digitais.
“O governo encara o produto [game] como bem de entretenimento, diferente de cultura. Isso não é exatamente bom”, diz Luiggi Reffatti, programador e designer da Fira Soft, empresa brasiliense de games.
O decreto em favor dos consoles vem seis anos depois da frase “é um crime o videogame, tá ok? Você tem que coibir o máximo possível”, dita em 2013 por um Jair Bolsonaro ainda distante da faixa presidencial, no programa “Mulheres”, da TV Gazeta.
Em 2019, já presidente, Bolsonaro ligou pessoalmente para o jogador profissional de “Counter-Strike” Gabriel Toledo, conhecido como FalleN. A pauta da conversa era redução de impostos sobre games.
Mas o que levou à mudança de opinião do presidente? “Esses jogos costumam tocar em questões que são parte dessa cultura branca, heterossexual e conservadora. Uma das franquias de maior sucesso desse mercadão é ‘Call of Duty’, que tem uma clara pauta de exaltação militar”, diz o jornalista João Varella, arriscando uma hipótese para o carinho de Bolsonaro pelos games. Autor do livro ainda inédito “Videogame - A Evolução da Arte” (ed. Lote 42), Varella afirma que, no imaginário criado pelos jogos AAA (ou “triple A”), como são conhecidos os games blockbuster, impera a “competitividade exacerbada”.
E se o conceito de guerra cultural tem como epicentro temas como raça, sexualidade e comportamento, então essa idealização dos games é terreno menos hostil para a direita. “Nos games de maior expressão, existe uma cultura de violência para resolução de problemas que encaixa com uma ideia bolsonarística. E aí clica uma coisa com a outra”, diz Varella.
Porém, esse universo é mais complexo do que o senso comum faz parecer. As mulheres são a maioria dos jogadores casuais: 58,8%, de acordo com pesquisa Game Brasil de 2019. Nesse grupo, jogase até três vezes por semana, em sessões de até três horas, e a plataforma principal são os smartphones.
Mas são os consoles e computadores que atraem a preferência dos jogadores “hardcore”, que representam 30% dos mapeados —uma minoria ruidosa, composta majoritariamente por homens (58,9%).
Sob o ponto de vista das produções, começam a ganhar expressão jogos que vão na contramão da hegemonia temática dos AAA.
Longe dos protagonistas machões de franquias como “God of War” ou “Red Dead Redemption”, o game independente brasileiro “Dandara”, listado como um dos melhores de 2018 pela revista Time, tem uma personagem negra como protagonista, inspirada na mulher de Zumbi dos Palmares. Já o australiano “Florence”, eleito o melhor jogo para celular pelo Game Awards (espécie de Oscar do setor), define-se como “uma história de amor interativa”.
Mesmo dentro do âmbito dos AAA, ecos feministas se fazem presente. A protagonista da franquia “Tomb Raider”, Lara Croft, tem uma representação menos sexualizada na versão de 2018, se comparada com sua versão peituda de 1996.
A violência como solução de problemas, o machismo e a competitividade não são exclusividade dos videogames e têm forte presença nas alas mais comerciais de outras linguagens artísticas — de Hollywood a best-sellers juvenis. A diferença é que, como os jogos eletrônicos já nasceram mais voltados ao mercado, a supremacia dos AAA foi mais natural.
“Estamos em um momento de ver o videogame como expressão artística. Não dá para ficar só no ‘Call of Duty’ e achar que é tudo tiro, porrada e bomba”, diz Varella.
Os jogos ainda não se sagraram no Olimpo das artes. Caso chegue esse momento, resta saber se os afagos do conservadorismo permanecerão.
O flerte do presidente Jair Bolsonaro com o mundo dos videogames, posto em prática com a recente redução da alíquota do IPI, não atinge diretamente quem produz jogos no Brasil. A ação esquenta o mercado para quem consome, mas, para os desenvolvedores, o terreno continua árido.
Já um possível desmonte de órgãos de fomento pode ter consequências mais diretas.
A Ancine, na mira do presidente, no ano passado anunciou R$ 45,2 milhões de fomento via Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) para games.
O consumo de videogames é grande no Brasil, porém, a produção nacional ainda engatinha —e para um mercado ainda novo como este, fomentos são tão bem-vindos quanto necessários.
“Os jogos estão sendo afetados por cortes na cultura, que claramente não é [um tema] importante no governo atual”, diz Luiggi Reffatti, do estúdio brasiliense Fira Soft. Com o jogo “Krophobia”, conseguiu investimento de R$ 997 mil via FSA.
“A indústria [de games brasileiros] tem qualidade, mas ainda não fatura muito, porque é muito jovem”, diz Reffatti. A sua empresa, com sete anos de fundação, já é uma das mais antigas no ramo.
“Há um contraste imenso entre a indústria produtora e a indústria consumidora”, avalia Pedro Bastos, produtor do jogo de ação ‘Dolmen’, do estúdio potiguar Massive Work.
Quem reina no mercado gamer nacional são as empresas estrangeiras. De acordo com estimativa da Associação Brasileira de Desenvolvedoras de Games (Abragames), menos de 1% do faturamento do mercado de games no país vem de produções brasileiras.
A associação não vê contradição em uma diminuição de impostos concomitante a ataques a um órgão federal que fomenta jogos digitais. Em nota, a Abragames diz que “o aceno do governo para a indústria de games parece demonstrar interesse em fomentar o crescimento da indústria brasileira nesse setor e podemos aproveitar esse momento para o crescimento da participação na receita global dessa indústria”.
“O foco que está sendo dado é exclusivo para os consumidores. Ficaria muito feliz se pudesse se estender para o mercado produtor”, diz Bastos, que chegou a tentar editais da Ancine, mas não foi selecionado. Para o seu “Dolmen”, conseguiu recursos via financiamento coletivo e investimento privado de “pessoas físicas, empresários, amigos e família”, conta. Até agora, ele arrecadou R$ 1,5 milhão.
“Eu vejo esses incentivos e editais como paliativos. Não como solução”, afirma Bastos.
Para Heidy Motta, “não adianta baixar imposto de consoles se os desenvolvedores de jogos brasileiros estão sob péssimas condições de trabalho”. Motta, do estúdio MiniBoss, participou do desenvolvimento de “Celeste”, eleito o melhor independente pela premiação internacional Game Awards de 2018.
“As ações do presidente visam a precarização do trabalho no Brasil e isso afeta diretamente áreas pouco desenvolvidas e recentes, como a de jogos”, completa.
Há quem prefira ver o copo meio cheio, como Sérgio Sá Leitão, ex-ministro da Cultura, do governo Temer. “A redução de impostos é muito bemvinda, mas é preciso ir além. [O mercado de games] precisa de um empurrãozinho muito pequeno para deslanchar.”
A diminuição do IPI também pode abrir uma janela para criar um novo tributo que seja revertido aos produtores nacionais. É o que pensa Gustavo Steinberg, diretor do Big Festival, evento de jogos independentes. “Seria um bom momento para conversarmos sobre um ‘Condegame’”, diz, em referência ao Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), cujo recolhimento alimenta o FSA.